Salomé

Crítica


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Sinopse

A protagonista de Salomé é uma jovem modelo de sucesso. Quando retorna a Recife, sua cidade-natal, para passar o natal com a mãe, reencontra um vizinho que não vê há muito tempo, João, e por ele passa a sentir uma paixão arrebatadora. Ele lhe mostra um misterioso frasco contendo uma substância verde tóxica, e o sentimento dos dois se torna ainda mais forte. Mas o rapaz está envolvido com uma estranha seita, e ela precisa decidir o que fazer quanto a isso. Premiado no 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (2024).

Crítica

Não se apresenta um filme como Salomé e se mantém ileso diante tal exposição. Independente de qual lado da tela se esteja, se em frente ou atrás, como espectador ou como parte da equipe de realizadores. A provocação está em sua gênese, e uma proposta como essa não pode ser ignorada. Por mais que talvez se queira. Ou não, também. Afinal, quem até aqui chega, deve ao menos ter uma noção do que irá encontrar. Não apenas mais uma das tantas releituras do mito bíblico, sobre a princesa da Judeia que, por vingança e despeito, pede ao rei Herodes a cabeça do ex-amante, João Batista, que deverá lhe ser entregue em uma bandeja. Muito menos uma simples transposição da peça assinada por Oscar Wilde, publicada em 1891 e até hoje referência maior no assunto – e já levada às telas por nomes como Al Pacino e Jessica Chastain, apenas para ficarmos na versão mais recente (a primeira data de 1908!). A proposta do diretor e roteirista André Antônio (mais conhecido até então por seu trabalho com o grupo Surto & Deslumbramento) se mostra disposta a desconstruir e ir além de uma mera quebra de tabus. Essa inquietação tem um preço a ser pago, mas também muito a exibir a seu favor.

Os corpos à disposição do voyeur seduzido pela transgressão registrada pela câmera são exatamente aquilo que se mostram prontos a assumir, independente de qualquer outra leitura ou imposição. Salomé é vivida com garra e determinação por Aura do Nascimento, uma revelação capaz de hipnotizar o espectador com sua simples entrada em cena. Compreende-se a personagem ter deixado para trás uma existência sem muitas perspectivas e ganhado o mundo como modelo internacional. Ela é dona de cada passo, domina o ambiente com o olhar e se mostra à vontade sem minimizar sua ambição ou audácia. Quando volta para casa para os feriados de final de ano, o que encontra é o mesmo cenário que tempos antes havia dado adeus. Quem mudou, no entanto, foi ela. A mãe segue religiosa e temerosa de tudo que desconhece. A prima insiste em aceitar as coisas como elas se mostram, e não como poderiam ser. A tia a recebe de braços abertos, o que é mais fácil quando o ruído vem da casa ao lado. Mas o que dizer do menino filho da vizinha, malandro que almeja muito sem fazer tanta força, capaz de envolvê-la só com meio sorriso e uma fala mansa? Quando o desejo se manifesta, razão alguma parece fazer sentido.

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Salomé e João (Fellipy Sizernando, tão identificado com o tipo que defende que chega ser difícil imaginar nele alguma versatilidade) são encontro de almas. Independente do papel que assumem enquanto casal, seja na balada, nos encontros fugidios no meio da noite ou mesmo na cama. O que importa é o prazer que um é capaz de provocar no outro. E se esse não é medido apenas pelos sentidos, que se invista na alteração destes. Uma nova droga torna o sentimento que os une ainda mais forte. A maneira como cada um irá lidar com essa necessidade, porém, será distinta. Ele sabe como conseguir. Ela detém os recursos para obter. Um não é mera soma do outro, no entanto. As ausências do rapaz, justificadas como meios para um fim, se revelam um incômodo crescente na amante. A garota quer tê-lo, dominá-lo, não mais dividi-lo, a despeito de tudo que sobre ele falam, acusam, pressentem. Seus ouvidos estão surdos, seus olhos estão cegos, a boca se mostra muda. Há apenas uma vontade diante de si. E na incapacidade de seguir jogando do modo como lhe foi ensinado, sempre satisfazendo a própria vontade, a revolta surgirá com força. Amor e ódio são duas faces de uma mesma moeda.

Renata Carvalho, como a mãe, e Danny Barbosa, como a tia, são dois achados. As comadres que falam da vida dos outros, ao mesmo tempo em que rezam pelos seus, respondem pelo alívio cômico que o filme precisa, a ponto de merecerem um sitcom à parte somente com as duas. O fato de serem atrizes trans interpretando mulheres cis é um mérito da produção que não pode ser desconsiderado, mas também não exige ser incensado – melhor é perceber esse movimento como parte de algo maior, uma normalização da diversidade e do respeito ao indivíduo. Salomé vai do fundo das emoções humanas aos conflitos intergalácticos para mostrar que certas relações podem ser mais antigas do que o próprio tempo e, independente dessa verdade, seguirem tão válidas quanto o despertar de um novo dia e os desafios que esse repetidamente apresenta. E se o desfecho apenas confirma o que já era sabido, assim se dá pois a força está na jornada, e não apenas no destino.

Filme visto no 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em dezembro de 2024, e revisto no 14º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2025

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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