Crítica


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Sinopse

Durante 130 anos, o Brasil teve várias etapas de um processo de embranquecimento.

Crítica

A apropriação jornalística do formato documental foi esgotando por saturação (ou seja, pelo excesso de utilização) o depoimento como recurso cinematográfico. Principalmente quando a intenção é meramente didática/informativa, temos a tendência ao que se convencionou chamar de “cabeças falantes”, ou seja, filmes feitos basicamente da costura de testemunhos (geralmente filmados da cintura para cima) alinhavados em forma de discurso. Eduardo Coutinho soube oxigenar essas interlocuções, mas para isso transformou em fundamento o encontro entre realizador e testemunha. Em Ruído Branco o cineasta Gabriel Fonseca privilegia o panorama em detrimento das personalidades. Ele não está interessado na singularidade das mulheres que falam à câmera sobre negritude, senão como forma de construir a partir delas um painel diverso, ainda que sem chegar ao ponto de revelar a subjetividade das personagens. A jovem de pele retinta desempenha um papel específico que, colocado em paralelo com o da de pele menos retinta, acena à diversificação. Elas existem no filme para que experiências sejam apresentadas como sintomas de uma heterogeneidade social e racial.

Nesse sentido, a abordagem está mais interessada em falar com uma mulher que descobriu a potência de sua negritude tardiamente do que especificamente com Hilda Moura de Oliveira. A diferença determina o recorte e o resultado. Tal escolha não pressupõe qualidades e fragilidades, apenas nos oferece a ferramenta para compreender quais noções são enfatizadas num filme que consegue a proeza de lançar luz sobre várias coisas em menos de 15 minutos. Em momentos pontuais, o realizador ensaia um gesto mais ousado do ponto de vista da linguagem, como ao somar visualmente as imagens das depoentes e deixar que suas falas se sobreponham. Nesses instantes em que Gabriel Fonseca não está estritamente comprometido com as manifestações das entrevistadas, sobressai a tentativa de expressar pela ilustração. E ele é particularmente bem-sucedido ao utilizar fragmentos de Alma no Olho (1974), curta dirigido e estrelado por Zózimo Bulbul no qual temos um sujeito em performance para identificar as experiências corpóreas e espirituais de ser um homem negro.

Desse modo, Ruído Branco busca variar o modelo reivindicado pelo jornalismo, ainda que não tenha pudores ao assumir a sua herança didática. A ideia é informar e, ao mesmo tempo, diminuir ignorâncias. O destaque à soma de dados e constatações também é um indício do desejo de sinalizar o esquecimento como estratégia de embranquecimento. Alguns personagens falam da falta de estudo escolar e universitário sobre as verdades das vivências negras no Brasil – e não apenas a sua parcela escravizada. Recorrendo a outro expediente comum nos documentários de recorte informativo, o realizador não se contenta com as pessoas ditas comuns, achando por bem sustentar seus enunciados com a opinião de dois especialistas. Raphael Tim, o historiador, confere o lastro de passado para que tenhamos uma compreensão mais ampla sobre esse tópico de raízes profundas. Já Daniela Trindade, a psicóloga, cita precarizações mentais decorrentes de preconceitos e outras formas de minar a autoestima da população negra. Quanto ao aspecto instrutivo, tudo se encaixa confortavelmente.

De positivo, Ruído Branco tem o ímpeto de enfileirar sintomas e esclarecimentos. O pouco tempo à disposição inviabiliza o aprofundamento de determinadas questões vitais, mas não há a sensação residual de que o conteúdo propício a um longa acabou sendo comprimido em minutos. A consistência retórica resulta também da forma como os depoimentos são misturados com sons e imagens preexistentes. De relativamente negativo, a preferência pela transformação quase imediata dos personagens em figuras representativas, com isso deixando um pouco de lado a noção de sujeito. Mas, ao que tudo indica, a opção é consciente e pretende dar suporte à conscientização manifestada por gente anteriormente quase alijada da convicção de pertencimento. Uma ideia ótima é o encerramento com o arquivo que traz uma fala excelente da historiadora Beatriz Nascimento sobre a história do Brasil ser indubitavelmente escrita apenas por mãos brancas. Outro ponto alto é a análise do quadro em que o embranquecimento é exaltado pela avó grata aos céus pelo neto alvo.

Filme visto no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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