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Sinopse

Em Retrato de um Certo Oriente, os irmãos Emilie e Emir fogem do Líbano rumo ao Brasil. No trajeto, ela se apaixona por um comerciante muçulmano, causando revolta no irmão, que usará as diferenças religiosas para separá-los. Selecionado para o 13º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba (2024).

Crítica

Num olhar apressado, Retrato de um Certo Oriente poderia ser descrito como a história de um triângulo (?) amoroso nada simples, envolvendo paixão sexual com carinho fraterno, cujo destino dos três será determinado pela religião e por tradições que estes personagens lutam para nelas permanecerem fiéis, por mais que estas tenham ficado para trás na busca por uma nova realidade. Mas são estes elementos, que em linhas gerais parecem servir apenas como diferencial entre tantos contos similares, que no fim das contas se impõem como diretriz de um olhar mais amplo e complexo. Marcelo Gomes, o diretor e também um dos roteiristas, está, sim, interessado nessa jornada transformadora a qual os tipos que abraça atravessam. Mas, além da alternância de cenário, estará no âmago destes retratados o esforço dedicado à mudança, seja ela racional ou, ainda mais importante, rodeada por sentimentos conflituosos e emoções à flor da pele. As referências que até então tinham deixaram de ser úteis. O que precisam, agora, é olhar para frente. E se a beleza com a qual se deparam é ainda menor que a sensação angustiante que percebem desabrochar dentro deles, estará na determinação em seguir em diante a diferença entre se salvar ou não. Um filme, enfim, ciente tanto do que exibe, quanto daquilo que permite permanecer nas entrelinhas. Um presente tanto aos olhos, quanto à reflexão.

Emilie (Wafa’a Celine Halawi) e Emir (Zakaria Kaakour) são aqueles que restaram. A vida tal qual conhecem há muito se desfez, assim como o próprio país onde nasceram e que é tudo o que possuíam, afundado em guerras e disputas que remetem a tempos imemoriais. Para fugir de uma eminente convocação ao exército – e uma provável morte em um campo de batalha esquecido no meio do nada – ele decide se desfazer do pouco que ainda tinham, recolher estes trocados e, com a irmã, partir em busca de novas oportunidades num país que muito promete, por mais que não tenha certeza se esta entrega, de fato, irá ocorrer: o Brasil. Resgatando-a do convento no qual havia sido abandonada como única opção de sobrevivência, Emir leva Emilie consigo, mesmo que a contragosto dela. Em questão de dias se veem em um navio rumo ao desconhecido. O Líbano de suas infâncias e juventudes não mais existe. O que lhes sobrou é poder sonhar com o amanhã. Mas estarão prontos a abraçar este caminho desprovidos dos velhos conceitos que até ontem ditavam suas existências? Afinal, foram estes que os levaram até a encruzilhada que agora estão escapando. Chegar a esta conclusão parece ser ainda mais difícil.

Assim como qualquer história de viagem, a que aqui se desenvolve vai ganhando distintos contornos durante seus acontecimentos, sem a necessidade de se aguardar pelo destino a que se dirigem. E a maior mudança se dá com a entrada em cena de Omar (Charbel Kamel, de O Céu de Alice, 2020). O mascate muçulmano é homem experiente, acostumado às viagens intercontinentais e a se relacionar com o diferente. E nestes irmãos, as reações que irá provocar não poderiam ser mais diametralmente opostas. Emilie vê nele prazer e uma possibilidade de segurança, um conforto que há muito nela se perdeu e a chance de um futuro que havia até abandonado em sua terra natal. Com ele, a transição estaria completa. Mas Emir pensa diferente. Tudo o que enxerga no estranho é a mão do homem que matou seus pais, seja pela crença que supõe compartilharem, ou pela verdade que exibe no seu jeito de ser. Eis, portanto, um inimigo declarado, por mais que somente um desconhecido. Deposita nele, enfim, suas desconfianças e insatisfações, as angústias que vem represando há tanto tempo e que agora encontram motivos – por mais falhos que sejam – para transbordar. Um embate entre eles não terá final feliz, algo fácil de se antever.

Na mesma medida em que o apreço entre Omar e Emilie cresce, a fúria de Emir pelo amante da irmã também ganhará forças. Esse embate de energias contrárias é reflexo de um país em construção, ao qual se dirigem e deverão fazer parte assim que estiverem prontos. Mas não chegam tal qual partiram. Muito se perdeu pelo caminho, e outro tanto foi agregado durante a jornada. Assim, chama atenção quando é aos povos originários desse lugar que também está se transformando que recorrem em busca de ajuda assim que a tragédia deles se aproxima. A mensagem que recebem é clara: é preciso se ter paciência, pois o assentamento pode levar tempo, mas deverá ocorrer a despeito de qualquer coisa. Também eles são reflexos dessa terra que agora diante deles se abre e os acolhe. Se o casal por assim dito parece responder a um chamado de tradição e família, é de observar com cuidado o que se passa com aquele que perde seu ponto de referência e não encontra um novo no qual se apoiar. Emir se aproxima de um fotógrafo também viajante, e a relação entre os dois nunca vai além do sutil e do insinuado. As interpretações entre os laços que passam a se desenvolver entre eles são amplas, e podem estar tão próximas da verdade quanto afeitas ao absurdo. Mas quem determina o que é certo ou errado num caso como esse? O fato, enfim, está na leitura de quem essa a exerce.

Há de se destacar com entusiasmo o impacto provocado pelas imagens registradas por Pierre de Kerchove (de quem Gomes é parceiro de longa data, em filmes como Paloma, 2022, e Joaquim, 2017, por exemplo), que alcança um nível insuspeito de esplendor, sem, no entanto, distrair o olhar de quem o observa do que, de fato, está a ocorrer entre os tipos no centro da ação. O deslumbre que busca a cada enquadramento por vezes pode soar excessivo, mas no conjunto está alinhado à direção de arte minuciosa de Caterina Pepe e à edição delicada de Karen Harley, todos imbuídos do mesmo espírito de renovação vivido por estes personagens. Retrato de um Novo Mundo tem como base o romance de Milton Hatoum, mas dele se apropria sem agarras ou desrespeito, mantendo a reverência pelo original ao mesmo tempo em que o assume como inédito. Eis a possibilidade de crescer e assim, evoluir, ou se deixar levar por um passado que não mais tem valia. A decisão, tanto técnica quanto emocional, está em ambos os lados da tela. E também responde por este relato tomado pelo amor a tudo aquilo que pode ser, e não apenas satisfeito com o que se tem como certo.

Filme visto durante o 13º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Cinema de Curitiba, em junho de 2024

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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