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Sinopse

Diante de uma realidade crua e imprevisível, os personagens deste filme caminham sobre a linha tênue que separa a civilização da barbárie. Uma traição amorosa, o retorno do passado, uma tragédia ou mesmo a violência de um pequeno detalhe cotidiano são capazes de empurrar estes personagens para um lugar fora de controle.

Crítica

Depois de um mês em que o Festival do Rio exibiu o drama Dente por Dente (2014), uma das mais impactantes visões sobre a vingança desde Lady Vingança (2005), agora é a vez de nos depararmos com Relatos Selvagens. O sucesso argentino produzido por Pedro Almodóvar foi escolhido para abrir a 38° edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Diferentemente da aposta nas camadas narrativas e no percurso pelas profundezas do psicológico, propostas dos diretores sul-coreanos, o trabalho de Damián Szifrón dialoga desde o primeiro momento com o grande público.

Escrito pelo diretor – que assina igualmente a montagem junto a Pablo Carrera – Relatos Selvagens traz um conjunto de seis histórias ligadas pelo tema em comum. Mais do que a inacreditável briga entre dois desconhecidos em uma estrada deserta, a descoberta da infidelidade do cônjuge durante a festa de casamento ou a sequência de equívocos aos quais um engenheiro (Ricardo Darín, bem como lhe é de costume) é submetido no dia-a-dia, o filme tem duas características imprescindíveis para deixar o espectador atento durante toda a projeção.

A primeira é a forma como constrói o ambiente propício para inserir o suspense, independente dos acontecimentos que se seguirão. É impressionante como no espaço limitado de cada história – com aproximadamente 20 minutos – os personagens conseguem construir motivações, personalidades ou passados a justificar as ações que tomarão. O que Szifrón realiza aqui, em tempo limitado, muitos filmes levam horas para construir – e por vezes não são felizes. A segunda característica é o trabalho com a imprevisibilidade. A partir do momento em que o espectador sabe que a vingança entrará em curso cedo ou tarde, ele a espera. Entretanto, não pode nunca prever como ela se dará ou no que resultará. Estes recursos deixam a chama de interesse do público acesa.

Exemplo do modus operandi simples mas extremamente bem realizado, de Relatos Selvagens está na sequência inicial. A abertura é extraordinária, podendo ser comparada a de grandes filmes, seja pela qualidade, pelo envolvimento dos personagens, pelo ápice posto desde o princípio ou mesmo pela criatividade. Apenas não a torna tão impressionante – ou definitivamente tão marcante – quando nos damos conta de que não se trata de uma parte indispensável para o todo.

Terceiro longa de Damián (O Fundo do Mar, 2003, e Tempo de Valentes, 2005), Relatos Selvagens firma o argentino com um nome de peso dentre a safra de novos realizadores do país. Além do mérito raro de operar com naturalidade e competência em várias áreas – a transição de roteirista a diretor e montador lhe parece natural – Szifón chama ainda atenção pelo seu estilo de filmar.

Apesar de continuar no modo característico do cinema argentino contemporâneo ao construir um cinema popular (no sentido de ser acessível ao público em geral, mas sem ser necessariamente tradicional), o cineasta aposta em um estética que não bebe das mesmas referências de nomes como Pablo Trapero (Elefante Branco, 2012), Daniel Burman (O Mistério da Felicidade, 2014) ou Pablo Fendrik (El Ardor, 2014). A composição de sua obra soa estranha frente à produção local. O humor, por vezes negro ou estapafúrdio, nos lembra o de Robert Rodriguez, bem como a paleta de cores e a mise-en-scène tem algo de tarantinescas. Szifrón não filma, contudo, pela degustação da autorreferência, como os americanos, mas pelo exercício do gosto e o resultado da forma.

O leitor sentirá essas relações – e toda referência pode ser um diálogo silencioso, secreto e sigiloso – mais ou menos explícitas durante boa parte do longa. A agressão dentro do carro, quando os personagens se atacam munidos de extintor e uma chave para pneus, deixa no nosso horizonte a matriz humorística de Planeta Terror (2007) e À Prova de Morte (2007), por exemplo. Na esquete em que a garçonete tem a oportunidade de vingar-se da morte paterna, o assassino recebe o filho chegado de um ônibus. O trabalho de cena, o travelling (movimento lateral da câmera) em direção à porta e o personagem batendo palmas em quadro aberto, nos remetem à liberdade do espaço cênico de tantos filmes de Quentin Tarantino, como Jackie Brown (1997).

Relatos Selvagens poderia sofrer com críticas que viessem a apontar a previsibilidade e, principalmente, a forma apoiada em uma série de curtas agrupados, algo que se pode dizer de muitos filmes que buscam a união a partir de um tema. Confesso que temi a cada momento em que o projeto pôde trilhar esse caminho. No entanto, a habilidade da direção em sua condução desfez qualquer temor. O previsível foi eliminado – como boa parte dos personagens que vem à tela para morrer – e ao final da sessão resta a certeza de termos aqui um dos melhores do ano, mesmo ainda com alguns meses pela frente.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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