Crítica
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Sinopse
Crítica
Anne tem tudo o que sempre sonhou a seu dispor – mas de que isso adianta se, dentro de si, permanece vazia? Um esposo apaixonado, duas filhas gêmeas, o cachorro com quem passeia pelo bosque que circunda a bela casa onde a família mora, uma sociedade em uma importante firma de advocacia, casos estimulantes, clientes que a procuram em momentos de crise – para depois lhe agradecerem pelas duras palavras que ela oferece como orientação: tudo isso são elementos de uma vida perfeita, que vão se acumulando (e sendo riscados) em uma lista de metas a serem atingidas, apenas para disfarçar a falta de algo que nem mesmo ela sabe o que é. A chegada do filho mais velho do marido é um ruído com o qual ela não está preparada para lidar: a presença dele tanto provoca quanto incomoda, atrai quanto afasta. Ela precisa descobrir o que fazer a partir de agora. O certo é que, no meio do distúrbio, há apenas uma frase a ser dita: “cortem as cabeças”. Afinal, é ela a Rainha de Copas.
No texto de Lewis Carrol, a monarca sempre tão vermelha de raiva quanto o vestido que ostenta ao redor do corpo sente, mais do que irritação, inveja daqueles ao seu redor. Não é acaso o fato de que em mais de uma ocasião da trama escrita e dirigida por May el-Toukhy o espectador é convidado a acompanhar diferentes personagens narrando passagens de Alice no País das Maravilhas. Os elementos, afinal, estão por todos os lados. Há uma queda. E o relógio do coelho apressado tem um alarme particular, que apenas ouvidos treinados poderão ouvi-lo: afinal, é de dentro da protagonista que ele insiste em se manifestar. O tempo está contra ela. E se não correr contra todos que insistem em atrasá-la, quem ficará para trás será mais ninguém além dela mesma. Aquele que dorme ao seu lado todas as noites não percebe esse grito ensurdecedor. A irmã que é também sua melhor amiga a julga sem conseguir se colocar nos seus sapatos. Os que dela dependem no dia a dia dos bastidores da lei vivem sob o jugo da teoria. Mas como agir quando essa sai de cena, e é a prática que passa a ditar a ordem dos acontecimentos?
A excepcional Trine Dyrholm está cem por cento do tempo no controle de uma personagem tão apaixonante quanto detestável. Mesmo sendo muito mais velha – com idade suficiente para ser sua mãe – não haverá desconforto quando literalmente decidir se jogar nos braços – ou na cama, ou no corpo, ou no sexo – do enteado com quem até pouco tempo atrás nem sequer tinha contato. A relação dos dois é construída de forma turbulenta, entre mentiras, enganos e dissimulações. Ele não queria estar ali, ela não o queria no lugar que até então reinava sozinha. Ele é a lembrança viva de que aquele homem que pensava ser só seu já havia sido de outra, tinha tido uma vida diferente, distinta da que hoje os dois levam em conjunto. Melhor ou pior, isso pouco importa: era diferente. Por isso, parece quase lógico essa vontade tanto de conquistar, quanto de destruir. O domínio é dela. O invasor precisa ser vencido. Consumido. E eliminado.
Dyrholm, sem deixar transparecer qualquer tipo de esforço, oferece ao espectador uma mulher sofrida, mas vencedora. Que não dá o braço a torcer, mesmo quando tudo parece apontar contra ela. A determinação em fazer valer a sua versão será tamanha que voz alguma conseguirá se impor contra o seu discurso. Aqueles que ousarão incorrer nesse erro, ou ficarão pelo caminho, ou serão atropelados. Esmagados e deixados a lamber as próprias feridas. Isso se forem resistentes o bastante para permanecerem vivos. Há dor dentro de si. Mas não na medida suficiente para que se sinta obrigada a olhar para trás. O que conquistou, é seu por direito. Ela sabe diferenciar o que é certo ou errado. Mas dominar o conceito não quer dizer necessariamente ser capaz de fazer uso desses significados. Na corte, no trabalho ou mesmo em casa, na frente de todos que a observam e aplaudem tamanha desenvoltura, tudo é show e espetáculo. Mas a verdadeira performance se dá quando ninguém percebe. É no fechar das cortinas que a garantia de um novo dia se renova.
Brincando com espaços e tempos, May el-Toukhy faz de Rainha de Copas um filme duro, mas absolutamente irresistível. Intrigante de partida, envolvente no desenrolar, se confirma hipnotizante em sua conclusão. Muito disso está, também, nas mãos de sua protagonista, atriz em pleno domínio do jogo que lhe é oferecido. O jovem Gustav Lindh, como o enteado que guarda um mundo revolto prestes a entrar em erupção, e Magnus Krepper, o homem que se esforça do início ao fim para fazer a coisa certa, sem conseguir sequer chegar perto disso, são as outras pontas de um vértice tão sofrido quanto arrebatador. Enquanto isso, no controle das emoções aqui expostas, está essa mulher, tão fácil de amar quanto de odiar, tão passível de entendimento quanto de desprezo, tão igual a tantos do lado de cá da tela, mas tão reprovável em um comportamento proibitivo e, ainda assim, assumidamente humano. Cortem as cabeças: dele, deles, de todos. Menos a dela. Pois essa seguirá acima dos seus ombros. No final, parece ser a única coisa que importa. Seguir viva, tendo com o que se ocupar e, principalmente, obrigada a lidar com aquilo que será preciso esquecer.
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