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Sinopse

O filósofo Edmund Burke foge de Londres em 1769. Escapando de credores, ele decide excursionar pelos Alpes a fim de reescrever um livro, do qual depende o sucesso de sua vida dali para adiante.

Crítica

Em essência, o não natural tende ao ridículo em Problemas com a Natureza. O protagonista é o filósofo Edmund Burke (Antony Langdon) que, na companhia de sua criada, Awak (Nathalia Acevedo), vaga pelos Alpes a fim de inspirar-se. Ele deseja escrever sobre o sublime. Desde o princípio, a pompa do sujeito entra em choque com as regras ancestrais do ambiente. A insistência em reafirmar o servilismo da mulher, a fleuma com que se desloca por aquele espaço indiferente à sua pretensa superioridade, tudo isso se desprende da rica encenação proposta pelo cineasta Illum Jacobi. A prevalência dos ditames locais surge no contraste evidenciado pela risível tentativa do nobre de manter intactos os protocolos beneficiários de sua fidalguia. Aos poucos, percebe-se que o mundo desse racionalista é, diante daquilo, uma invenção repleta de formalidades simplesmente inúteis na vastidão cujas regas são totalmente outras, pois não inventadas. O pensador revela-se um indivíduo infantil, sobretudo pela dependência crônica, mal disfarçada de eminência garantida ao nascer.

Uma pequena fuga dessa trajetória errante oferece um importante dado de contexto. Credores chegam à residência de Burke, esta ode à decadência da burguesia, e encontram um criado desorientado em meio aos desarranjos dos cômodos bagunçados pela deterioração monetária e moral. Embora rápido, esse vislumbre nos permite compreender melhor as circunstâncias, adicionando outra camada de risibilidade à pretensa magnitude do aristocrata que peregrina rumo à iluminação. Na verdade, ele acaba empreendendo uma jornada conveniente para distancia-lo dos cobradores raivosos. Illum Jacobi demarca a perambulação do protagonista e da fiel escudeira, de certa forma, aludindo à dinâmica entre os também vagantes Dom Quixote e Sancho Pança, igualmente mostrando Burke como alguém que enfrenta moinhos de vento imaginários, tal como se lutasse contra gigantes ameaçadores. No entanto, esse sujeito empolado não é desvariado pelo excesso de leitura sobre os heróis cavalariços, mas pela própria crença nos pilares da sociedade classicista e “elevada”.

Transitando por cenários estonteantes, os viajantes exibem diferenças sutis, mas determinantes, no contato com a natureza. Burke vive a reclamar dos rituais espontâneos, como o trânsito das formigas, a direção em que o vento sopra, a ação de retomar o terreno que tentou-se colonizar pelo homem. Em suma, ele se coloca num conflito intermitente com a parte do mundo que sua razão não consegue totalizar. Já Awak, serva completamente obediente, porque ciente de seu lugar na cruel sociedade civilizada inglesa, demonstra uma maior capacidade de conectar-se organicamente com fenômenos que a circundam. Diferentemente do patrão coberto de panos, gradativamente entendido enquanto bufão que mantém como distintivo a peruca da aristocracia europeia do século 18, ela permite ao seu corpo descomplicadamente comungar, vide a fino tecido que a recobre parcialmente. Seu deleite não condicionado pelo intelecto, atento à capacidade lhe conferida pelo aguçar dos sentidos, é o tipo de experiência vedada ao filósofo embotado pelo imperativo da razão.

Problemas com a Natureza, então, coloca um dilema quase inconciliável ao protagonista, isso se levado em consideração o seu objetivo e o necessário para alcança-lo. O apego espalhafatoso aos títulos e às posições que atendem puramente a uma constituição social fundamentada em dominantes e dominados não se encaixa num panorama praticamente selvagem. Do alto de sua inteligência vultuosa, ele ignora que o sublime não pode ser capturado, quiçá ter sua existência compreendida pela beleza das subjetividades. Não há como definir com precisão irrefutável os acontecimentos, pois eles provocam em uns o que não operam noutros. Awak, por sua vez, vivencia fisicamente as circunstâncias, barganhando inteligentemente com as noções constituídas para ela compreender-se inferiorizada em alguma medida. O filme estabelece esse embate violento, sem para isso escrachar as contendas, instigando o espectador a pensar o lugar da aristocracia e da servidão, principalmente num entorno que prescinde dos artifícios. Ao contrastar modos de experienciar o viver, cria algo repleto de estratos e vernizes, recorrente tanto à beleza estética quanto à racionalização para dizer a que veio.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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