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Sinopse

Nelly, garota de oito anos de idade, acaba de perder a avó, e ajuda os pais a arrumar a casa em que a falecida morava. Ela explora a residência e os arredores onde está construída uma casa na árvore. Certo dia, a menina encontra uma garota de sua idade na floresta. As duas descobrem que têm muito mais em comum do que imaginavam.

Crítica

A cena inicial de Pequena Mamãe (2021) constitui um exemplo de eficiência de roteiro e direção. Como apresentar ao espectador o fato de que a avó de Nelly acaba de morrer num asilo e que ambas eram próximas, sem qualquer diálogo explicativo, sem fotos de ambas juntas nem trilha sonora lacrimosa? A diretora Céline Sciamma opta por uma saída simples: a garota de oito anos de idade passeia de quarto em quarto, despedindo-se de três ou quatro senhoras idosas (ou seja, ela as conhecia bem), retornando a um quarto recém esvaziado (ou seja, alguém morreu ali), e perguntando: “Posso ficar com a bengala dela?” (ou seja, é a avó de Nelly quem partiu). “Sim”, responde a voz de uma mulher de costas, em tom melancólico (ou seja, é a mãe da garota). Tudo está dito nesta curta e inventiva introdução, onde se compreende o conflito, as personagens, os cenários, o peso dos símbolos. Na sequência seguinte, mãe e filha fazem um pequeno carinho dentro do carro, embora apenas o rosto da adulta seja visível no enquadramento. Compreendemos tudo, novamente: a intimidade, a tristeza e as brincadeiras entre ambas, certamente efetuadas muitas vezes no passado.

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É preciso atingir um grau de sofisticação narrativa fora do comum para realizar o que a diretora propõe neste pequeno drama. Em míseros 70 minutos, com poucos personagens em cena, ela cria uma fábula comovente, sem uma lágrima sequer, a respeito da morte. Sciamma acredita na potência das imagens e na capacidade de compreensão do espectador: qualquer elemento passível de dedução pelo espectador será exposto sem diálogos ou explicações. Não é preciso afirmar que os pais da menina estão distantes um do outro: basta mostrar o desconforto deles quando se encontram lado a lado, e as noites passadas em quartos diferentes. Não há necessidade de verbalizar que existe algo errado na casa de Marion, garotinha encontrada por Nelly na floresta: basta perceber a menina sempre sozinha no ambiente doméstico, cozinhando, permanecendo horas sem adultos por perto. Ah, Nelly e Marion são idênticas, e as casas das duas, também. O papel de parede, em tom verde e antigo, é o mesmo. A diretora permite que juntemos as peças, entrando progressivamente no caráter mágico desta fantasia tão generosa quanto verossímil – afinal, explora-se a memória afetiva em detrimento de algum fenômeno fantástico externo aos personagens.

Assim, o roteiro se situa no domínio dos sentimentos: compreende-se que algumas partes da narrativa soem impossíveis ao mundo que cerca nossas protagonistas, porém são reais a Nelly e Marion, e apenas este fator importa. A diretora encontra uma alternativa singela para permitir que as três gerações de mulheres se reencontrem simbolicamente. O filme jamais esconde o caráter de faz de conta: as pequenas heroínas constroem uma cabana na floresta, atuam no papel de investigadoras e condessas misteriosas, aguardam por transformações mágicas quando o pai corta o cabelo ou ativa o “teletransporte ao amanhã” (a definição mais doce possível à elipse e à montagem cinematográfica em geral). A casa, espaço concreto ocupado pela avó falecida, transforma-se em terreno de jogo e de construção da subjetividade – vide o papel de parede, o compartimento secreto no corredor, os objetos de decoração no quarto. O senso de aventura permanece colado ao real, enquanto a representação adulta se permite revisitar a infância e a infância compreende dolorosamente os problemas da vida adulta. Ao conceber a reinvenção das personagens, o drama faz com que Nelly e Marion se observem e façam as pazes tanto com o passado quanto com o futuro. O luto ultrapassa a aceitação de um fato externo, sendo compreendido enquanto processamento de sentimentos íntimos.

Pequena Mamãe possui pelo menos meia dúzia de cenas memoráveis, pequenas pérolas de direção, roteiro e atuação. As pequenas Joséphine Sanz e Gabrielle Sanz são excelentes, equilibrando-se bem com o despojamento de Stéphane Varupenne e a gravidade oferecida por Nina Meurisse. A compreensão da morte passa por uma aceitação do conceito de finitude, e uma percepção do caráter perverso do tempo: “Não haverá uma próxima vez”, a filha alerta ao pai. As sombras sugerindo a presença imaginária dentro do quarto, as emoções ocultas no interior de uma pirâmide e um jogo de palavras cruzadas reforçam a capacidade do cinema em transmitir sensações ambíguas entre felicidade, tristeza, melancolia, angústia. O filme carrega todas essas tonalidades sem recorrer aos tons frios da fotografia, nem à iconografia clássica de fotos, cartas e vídeos da infância. A diretora parte para um caminho mais inventivo, porque despido de excessos e reiterações. O longa-metragem resulta numa meditação sobre o próprio cinema, em sua capacidade de contar histórias e se reinventar. Nelly e Marion tornam-se diretoras e espectadoras das narrativas criadas uma para a outra. Que bela ideia para aproximar mãe e filha, permitindo que se enxerguem dentro do corpo envelhecido ou rejuvenescido. A metáfora da procriação enquanto superação simbólica da morte se faz literal nesta carinhosa história de fantasmas.

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Com este projeto, Sciamma oferece seu filme mais depurado até hoje. Espera-se que ele conquiste o reconhecimento e a atenção merecidos, e também que seja valorizado nos estudos de cinema pela riqueza de sua linguagem, pelo belíssimo trabalho de fotografia, a precisão da montagem e a astúcia do roteiro. Em tempos de crise, quando alguns diretores partem para filmes urgentes ou extremos, a cineasta prefere se centrar sobre o essencial, fazendo com que os personagens se voltem literalmente a si mesmos. Há um caráter psicológico nesta aventura silenciosa que ocorre apenas a Nelly e Marion. Alice viaja através do espelho para dizer a si própria, em outro momento da vida, que se acalme, aprenda a esperar pelo futuro e aceitar o passado. A narrativa concilia diferentes tempos e espaços, distintas gerações e visões de mundo (o otimismo da garota contra o pragmatismo do pai e a personalidade depressiva da mãe). A representação do luto, um dos temas mais caros e complexos ao cinema, converte-se numa jornada totalmente realista e totalmente metafórica simultaneamente. O espectador, em posição de cúmplice privilegiado, testemunha alguns instantes de ternura capazes de marcar os personagens pelo resto da vida – mas este será o segredo de Nelly, Marion e o nosso.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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