Crítica


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Sinopse

Sérgio vive situações muito complexas que envolvem o seu moribundo pai e o seu distante filho durante um processo que diz respeito à incorporação imobiliária de uma área muito popular da cidade do Recife que deve desaparecer.

Crítica

O pai de Sérgio (Marco Ricca) está morrendo aos poucos num leito de hospital. A visão desse respeitado empresário acamado, fragilizado pelas dores que nem o seu farto dinheiro faz desaparecer, é o sintoma de uma vulnerabilidade raramente associada aos homens de negócios. Ao longo da trama, será perceptível que a ideia de onipotência foi incutida nos filhos pelo pai, como algo essencial tanto no âmbito íntimo quanto no exercício de uma profissão competitiva. Mas, o sujeito que passou provavelmente boa parte de sua vida jogando o jogo dos poderosos, moldando herdeiros para continuar o seu legado, agora está prestes a desaparecer. Quando encontramos Sérgio, o filho mais novo, ele está no pleno exercício desse patrimônio ao criar estratégias para desapropriar casas humildes em locais valorizados. Logo depois, tem uma briga homérica com o irmão mais velho por conta do veto a um projeto inovador. Desse modo, Sérgio segue a trilha aberta pelo pai, para isso se valendo dos ensinamentos de “como se faz”, mas tem lampejos de ambição artística/humanista, por assim dizer. E isto é algo incompatível com o pragmatismo do universo dos empreendimentos milionários. Parece que a iminente perda do pai abre uma rachadura na personalidade forjada pelos protocolos do ramo imobiliário. E a rachadura aumenta à medida que os conflitos geracionais o atingem não como filho, mas como pai de um jovem. Essa fenda cresce ainda mais quando Sérgio pressente que está repetindo o moribundo. Há então o embate entre admirar o filho que ele não foi e seguir o modelo de pai que ele também admira.

Seria simplório ficar reiterando que Tom (Gustavo Patriota), o filho jovem, emula o comportamento de Sérgio quando este ensaiava se rebelar contra o seu pai no passado. O cineasta Marcelo Lordello – que assina o roteiro ao lado de Fábio Meira e Letícia Simões – pontua essa simetria de modo mais orgânico, por meio de diversas sutilezas acumuladas. A ênfase não está no desconforto do garoto, mas nas expectativas nutridas por Sérgio sobre o futuro de alguém que “precisa” se preparar para substituí-lo. Exatamente como ele foi obrigado a fazer, jogando para o alto ambições pessoais. No entanto, Sérgio é um sujeito pleno de complexidades e pequenas contradições que esgarçam as frestas pelas quais escapam as incertezas. O trabalho de Marco Ricca é fundamental para o protagonista de Paterno ser compreendido como alguém atravessado dramaticamente pela crise que ameaça leva-lo a um colapso. Ele é como um prédio cujas fundações pareciam sólidas, mas que começam a ruir em contato com a maresia. O ator compõe esse homem que deixa as fragilidades à mostra somente nas entrelinhas. Sérgio precisa sustentar um discurso de macho alfa destituído de sentimentos em prol dos negócios, mas esboça um sorriso de saudade de si mesmo ao constatar que o filho começou a ouvir canções de Chico Buarque. Aliás, o breve instante de reconexão com o seu “eu” do passado lembra a dancinha do pai de Ferris Bueller de Curtindo a Vida Adoidado (1986) quando ressoa Twist and Shout, a canção dos Beatles que momentaneamente o retira do presente burocrático num escritório frio e o devolve à juventude.

Há uma moldura espessa dentro da qual o drama íntimo de Sérgio se desenrola. Na verdade, existem duas dessas guarnições. A primeira é a familiar. A administração da empresa segue o padrão dos feudos e dos reinos. Existe uma linha de sucessão seguida à risca, com o primogênito vivido por Nelson Baskerville prontamente tomando para si o controle do que lhe pertence por tradição. Mesmo que o mais velho diga “o pai me escolheu”, o filme não debate essa predileção, deixando no ar a possibilidade de situarmos a linha sucessória como o cumprimento de um protocolo. Marcelo Lordello poderia mergulhar no melodrama ao escancarar os conflitos geracionais, bem como ao estilhaçar os limites da cordialidade familiar que pressupõe submissão à hierarquia. Mas, o realizador foge dessas tintas saturadas e mantém o jogo entre os entendidos e subentendidos, ainda que algumas coisas sejam pontualmente escancaradas. Uma destas é a música socialmente consciente (Chico Buarque, Belchior e Gal Costa, etc.) como sinal de um pensamento progressista. Porém, o mais importante do filme está nas interações passivo-agressivas, nas inabilidades, nas artimanhas de poder implícitas em certos diálogos e na posição que as pessoas ocupam nesse processo que assemelha Sérgio a um prédio de fundações supostamente inabaláveis que implode aos poucos. Marcelo Lordello não chama atenção à sua direção, então “desaparecendo” para não desviar o foco de Sérgio e daquilo que (n)ele revela.

Em Paterno há, pelo menos, um par de cenas excepcionais entre Marco Ricca e Selma Egrei, a intérprete da mãe de Sérgio. Não deixa de ser indicativo de uma estrutura machista a forma como a matriarca reage à iminente morte do patriarca: tentando proteger o patrimônio econômico construído ao lado desse marido que escondeu um grande segredo ao longo da vida, para isso rechaçando a existência de outra mulher. Já Fabiana Pirro, atriz que vive a esposa de Sérgio, tem uma cena em que prevalece outro aspecto do feminino nesse entorno masculino. Seu indignado “me respeita” é um brado que retumba apropriadamente no ego fraturado do protagonista. É possível, ainda, estabelecer paralelos com O Poderoso Chefão (1971). Sérgio pode ser correspondido em certas medidas ao Michel Corleone de Al Pacino que não desejava herdar um império familiar se isso o definisse como indivíduo. A conversa sobre negociatas escusas durante o enterro também oferece uma ponte com a obra-prima de Francis Ford Coppola – uma vez que ela é inaugurada com pactos estabelecidos/fortalecidos durante uma cerimônia de casamento. E está aí  a segunda moldura: a sociedade em que os poderosos compram políticos para desguarnecer os pobres e ficarem ainda mais poderosos. Num filme tão sensível sobre um personagem que vai se despedaçando, é lindo o encerramento que alude aos cenários brutalizados pela especulação imobiliária. Contrária à primeira cena, na qual as blindagens do automóvel de luxo barram a cacofonia da cidade, a última nos mostra Sérgio vencido pelo cansaço, ciente da insatisfação de Tom e cedendo à sinfonia da metrópole. Não deixa de ser otimista. Virá uma mudança depois da tempestade?

Filme assistido durante o 11º Olhar de Cinema de Curitiba, em junho de 2022.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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