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Sinopse

José tem três filhos, sendo um deles adotivo, e é avô de um casal de jovens. Sua família, marcada por perdas e desencontros, tenta ser feliz numa antiga boate chamada Paraíso Perdido, onde cantam músicas populares e românticas.

Crítica

Paraíso Perdido tem cheiro de veludo azul, batom e whisky. A trama se passa quase totalmente na casa noturna que dá nome ao filme, espaço de amores desbragados, emoldurados por canções românticas, aqui fora, pejorativamente, chamadas “bregas”. O dono da noite é José (Erasmo Carlos), patriarca que abriga sob suas asas a prole de vozes distintas, projetadas do palco diretamente ao coração dos apaixonados. Habilmente, a cineasta Monique Gardenberg se apropria dos tons intrínsecos às melodias que embalam o longa-metragem, utilizando letras que explicitam saudades imensas e afetos do tamanho da disposição dos enamorados, a fim de construir praticamente um universo paralelo. Nele, não há vergonha de atira-se sem proteção nos braços do desejo pelos beijos de outrem. Imã (Jaloo, em seu primeiro, e bem-sucedido, trabalho no cinema), sofre violência por travestir-se, exatamente por ser quem bem entende à beira da ribalta e no cotidiano. Como precaução, o policial Odair (Lee Taylor) é prontamente contratado para salvaguardar sua integridade física.

Aos poucos, o segurança é absorvido por esse panorama conectado à sua origem. Filho de Nádia (Malu Galli), ex-cantora que perdeu a audição em virtude de um episódio de violência doméstica, ele vai se apropriando daquele cenário colorido e orgulhosamente “cafona” – desde que isto signifique falar de paixão em tempos tão cínicos e hipócritas. Paraíso Perdido, assim como outras obras da realizadora baiana, tem diversos personagens, conseguindo a proeza de conferir a todos uma função dramática relevante. Tal capacidade para fazer os indivíduos brilharem ocasionalmente está atrelada ao viés humano da pegada, à imprescindibilidade de, antes de tudo, entendermos o que cada pessoa sente diante dos acontecimentos, bem como a expressividade de ditos e não ditos, em semelhante medida. A cenografia, os figurinos, os trejeitos dos atores, tudo entra em consonância, no intuito de demostrar a possibilidade de resistir ternamente às mazelas do mundo. Aliás, esse agrupamento de homens e mulheres é encarado como uma família singular e unida.

A inspirada direção musical de Paraíso Perdido é responsabilidade do cantor e compositor Zeca Baleiro. Pérolas da seara popular romântica ganham releituras nas vozes dos atores. Teylor (Seu Jorge), Angelo (Júlio Andrade) e Celeste (Julia Konrad) tomam o palco em números que auxiliam o andamento do enredo, não funcionando apenas como meros interlúdios. Nesse âmbito, aliás, Imã se destaca, imprimindo um tom trágico aos versos, algo que combina bem com o perigo ao qual é brutalmente submetido cotidianamente, simplesmente pelo fato de ser homossexual e gostar de vestir-se de mulher. Monique Gardenberg contrapõe personagens desmedidamente carinhosos com a violência vinda de fora, por exemplo, dos homofóbicos que descarregam suas frustrações nos corpos alheios, trazendo-lhes sofrimento. A cineasta afirma a diversidade em sua abordagem, dando relevo à universalidade dos sentimentos, independentemente da orientação sexual, das circunstâncias e do preço pago à prevalência da liberdade. É bem-vinda, também, a completa ausência de moralismos. Gosta-se a dois, a três, infidelidades são tratadas sem ranço acusatório. Sobressaem os matizes.

Paraíso Perdido não se acanha ao abraçar o melodrama folhetinesco, fazendo dele a base de sua narrativa, lançando mão de idas de vindas sentimentais, traições, perdões sinceros, enfim, das relações, para expor a capacidade analgésica dos vínculos genuínos às dores do mundo. Nesse itinerário capitaneado por amores sem-vergonha, empacotados por verdadeiros artistas como Márcio Greyck, Roberto Carlos, Fernando Mendes, Odair José, Waldick Soriano, Raul Seixas e Belchior, Monique Gardenberg mantém os holofotes nas vicissitudes, deflagrando essências pelas maneiras de amar. Temas como o aborto oferecem uma boa contextualização social. Mesmo subordinados à esfera fabular, eles são conectados com a realidade. Entre tanta gente, Eva (Hermila Guedes) e Milene (Marjorie Estiano) evadem do cárcere apaixonadas, inclusive, pela liberdade de vivenciar os desígnios do querer. Pedro (Humberto Carrão) transcende os próprios preconceitos. Joca (Felipe Abib) briga literalmente pela amada, protegendo os que a cercam. E todos, sem exceção, demonstram submissão tão e somente ao que as emoções pedem e permitem viver.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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