Pânico Abaixo de Zero

Crítica


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Sinopse

Matt e Naomi estão fazendo uma viagem de carro na Noruega, onde ela deve participar de uma noite de autógrafos de seu novo livro. Conforme as condições de visibilidade no trajeto pioram, o casal decide dormir à beira da estrada para chegar ao hotel no dia seguinte. Quando acordam, descobrem que o carro foi soterrado por neve. Eles não conseguem abrir as portas, nem pedir ajuda. Para agravar a situação, Naomi está grávida, e a data do parto se aproxima.

Crítica

Pânico Abaixo de Zero (2020) é um filme escrito e dirigido por homens. Isso está longe de constituir uma exceção, e na maior parte dos projetos, sequer constituiria uma informação relevante para a análise. No entanto, mesmo sem saber previamente deste dado, o espectador pode pressentir que esta história real de sobrevivência foi adaptada pelo ponto de vista masculino. A princípio, existe a premissa de um casal viajando até a Noruega, onde a esposa Naomi (Genesis Rodriguez) deve participar de um evento de lançamento de seu novo livro. Como as condições de visibilidade pioram, decidem dormir à beira da estrada e chegar ao hotel no dia seguinte. Ao acordarem, se veem soterrados por neve rígida por todos os lados. É impossível abrir a porta, e a falta de sinal impossibilita o pedido por socorro por telefone. Qual seria a melhor decisão? Ficar dentro do automóvel aquecido, esperando para serem descobertos, ou quebrar a janela, escavar o gelo e sair em busca de ajuda estrada afora? O marido Matt (Vincent Piazza) defende a primeira opção, e a esposa, a segunda.

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A direção logo define com qual olhar se identifica. Primeiro, devido à construção feminina. Todos os problemas derivam de Naomi, sem exceção. Ela tem dores nas costas. Ela precisa ir ao banheiro (mas o marido, jamais). Ela se sente asfixiada, alucina, grita, tenta agredir o companheiro. Ela esquece de colocar a tampa na garrafa d’água e corre o risco de matar ambos desidratados quando o objeto entorna. Ela toma remédios prejudiciais ao bebê – a mulher está grávida, prestes a dar à luz -, e quebra o vidro do carro de modo a tornar o ambiente mais frio a todos. Descreve-se a escritora enquanto histérica, descontrolada emocionalmente. O marido, em contrapartida, supre estas faltas. Ele demonstra inabalável bom senso, possui as melhores ideias, e quando há divergência no casal, exige que adote seus planos: “Você pode confiar em mim desta vez?”. Caso ainda restem dúvidas, os letreiros finais esclarecem, a partir de ínfimas explicações científicas, qual dos dois lados tinha razão nesta batalha. Permanecer vivo torna-se secundário: trata-se de uma questão de honra. O diretor Brendan Walsh precisa esclarecer o responsável pelas decisões corretas, e a responsável pelas decisões erradas.

Durante a primeira metade, o drama se concentra menos nos dilemas da clausura do que no embate de forças entre os protagonistas. Pânico Abaixo de Zero se assemelha a uma metáfora para os relacionamentos abusivos e a masculinidade tóxica. Matt determina quando a esposa pode tomar remédios, quanto deve comer, e em qual quantidade, quando e como deveria utilizar o resto de bateria do telefone celular. A crônica de uma relação abusiva poderia ser interessante caso carregada de senso crítico, pois o contexto explicita a hierarquia entre homem e mulher. No entanto, o problema decorre do fato que o discurso foge ao ponto de vista externo, equilibrando os dois lados, para privilegiar a subjetividade deste herói, salvador e mártir da preservação familiar. O destino de Matt após semanas preso dentro do carro serve para afirmar que, confrontado a restrições alimentares e situações climáticas idênticas àquelas da esposa, é ele quem mantém a sanidade e, supostamente, pensa em nome de todos. Vale voltar ao chocante letreiro final, quando se repete qual dos dois personagens será admirado eternamente pós-crise.

Tamanho desequilíbrio no tratamento dos personagens prejudica um suspense que possui qualidades enquanto exercício de gênero. O cineasta consegue estabelecer um espaço dinâmico dentro do carro sem vista em nenhuma das janelas, além de trabalhar com iluminação razoavelmente verossímil para um veículo bloqueado por todos os lados. O tempo ganha um tratamento plausível: apesar dos letreiros indicando a passagem dos dias, evita-se acelerar a fome, a desidratação e a possível chegada de ajuda. A sequência final possui bom trabalho de montagem, sem acelerar o desfecho para torná-lo mais emocionante. É uma pena que o trabalho de efeitos especiais sugira que o carro está enterrado a poucos centímetros da superfície da nevasca, quando seria muito fácil ao casal cavar a geleira e sair pelo lado de cima. A posição do veículo submerso, porém com algumas partes expostas, sustenta a clara impressão de que a fuga poderia ter ocorrido mais cedo – caso o marido não proibisse a esposa de manifestar opiniões. A alternância entre cenas dentro do carro (correspondendo a quatro-quintos da narrativa, digamos) e planos aéreos da paisagem coberta de neve (para sublinhar o isolamento dos dois) carrega uma inventividade limitada, porém funciona dentro dos propósitos da narrativa de sobrevivência.

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Vale abrir um parêntese que ultrapassa a esfera deste projeto: é preciso problematizar a gravidez enquanto elemento de tensão nos suspenses hollywoodianos. Nestes filmes, concebidos em sua maioria por homens, as viajantes estão invariavelmente à beira do parto, constituindo um problema suplementar para o herói. Grande ironia: transforma-se a gestação num problema masculino, um empecilho lastimável em nível semelhante à escassez de comida, água e oxigênio. Há um componente misógino na percepção do corpo feminino como fonte de problemas por ser instável, incontrolável, e disposto a atrapalhar o aventureiro no instante em que menos precisaria de novos obstáculos. Pânico Abaixo de Zero pertence ao grupo de filmes onde a presença feminina constitui uma inconveniência, um atraso à sobrevida de ambos. A inspiração numa história real, neste caso, importa pouco, pois não se discute a verossimilhança de uma mulher grávida nestas circunstâncias, e sim o modo como o discurso aborda a sua presença. Diante da trajetória de uma escritora respeitada, prestes a selar uma conquista profissional e ter um bebê, os criadores encontram uma maneira de erguer uma homenagem à lucidez masculina. Luta-se pela resistência não apenas dos corpos, mas também de uma mentalidade patriarcal.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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