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Sinopse

Diante dos ditames da igreja e dos mandatários da pequena cidade de Taperoá, João Grilo e Chicó sobrevivem utilizando boas doses de bom humor e malandragem. A Virgem Maria, Jesus e o Coisa Ruim entram na jogada.

Crítica

Os Trapalhões se tornaram um êxito popular entre os anos 1970 e 1980, consagrando-se de norte a sul do Brasil através de um filão que antes deles só havia sido explorado em ciclos regionais, por nomes como Mazzaropi, em São Paulo, ou Teixeirinha, no Rio Grande do Sul. Seus quatro integrantes – um carioca, um cearense, um paulista e um mineiro – representavam a diversidade do país de maneira impressionante. Isso, no entanto, demorou para aparecer em seus filmes. Após começarem com paródias de sucessos hollywoodianos, decidiram irem para a própria Hollywood – e Os Saltimbancos Trapalhões (1981) foi o primeiro passo nesse sentido. Mas faltava ainda buscar uma identidade nacional mais completa. E isso, enfim, eles conseguiram atingir com maestria somente em Os Trapalhões no Auto da Compadecida.

Por mais que esse longa de 2,6 milhões de espectadores tenha sido encarado quase como um fracasso de público para o grupo – na época, seus títulos atingiam bilheterias com mais de 4 milhões – Os Trapalhões no Auto da Compadecida era apontado por Ariano Suassuna (autor do texto original e também colaborador do roteiro) como a melhor versão audiovisual de sua obra. Ou seja, superior até mesmo à O Auto da Compadecida (2000), longa de Guel Arraes que foi encarado como sucesso por levar 2 milhões de brasileiros aos cinemas (ou seja, menos que a adaptação d’Os Trapalhões, portanto). Mas os tempos eram outros, a Retomada estava recém começando e investir em uma história consagrada era uma aposta segura. Muito mais arriscado foi o que Didi, Dedé, Mussum e Zacarias fizeram. E mais impressionantes também foram os resultados que alcançaram.

Para começo de conversa, esqueçamos dos personagens clássicos dos quatro patetas. Renato Aragão é João Grilo, enquanto que Dedé Santana é Chicó. Os dois trabalham para o Padeiro (Zacarias) e a voluptuosa esposa dele (Claudia Jimenez). Ela trai o marido com todo mundo, ele é um patrão avarento e cruel. Quando o cachorro deles fica doente, João Grilo e Chicó prometem trazer o Padre (Emmanuel Cavalcanti) para benzê-lo e, com a morte do bicho, um enterro em latim será encomendado. Para conseguirem isso, envolvem o Major Antonio Morais (Raul Cortez) e até o Bispo (Renato Consorte) e seu Frade (Mussum). Todos acabam ligados em uma rede de mentiras e confusões, até serem assassinados pelo cangaceiro Severino (José Dumont), quando esse toma a pequena cidade de Taperoá. Já no céu, se veem primeiro à mercê do Diabo (Cortez), que pretende levá-los aos seus domínios. Mas Jesus (Mussum) surge para intervir, solicitando um julgamento justo. E quando parece que se dará um cabo de guerra entre os dois lados, eis que surge a Compadecida (Betty Goffman), pronta para defender os pobres mortais, independente de seus pecados.

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Única parceria d’Os Trapalhões com o consagrado Roberto Farias – diretor de clássicos do cinema nacional, como O Assalto ao Trem Pagador (1962) e Pra Frente, Brasil (1982) – Os Trapalhões no Auto da Compadecida representa também o encontro de outros mestres, como o diretor de fotografia Walter Carvalho (vencedor de oito troféus no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro) e a montagem precisa de Marta Luz (Carlota Joaquina: Princesa do Brazil, 1995), por exemplo. Percebe-se, portanto, um esforço notório dos artistas em fazer desse um produto diferenciado dentro de suas filmografias. Mas o melhor mesmo é o casamento perfeito de suas personas cômicas já consagradas com os tipos que interpretam nessa grande farsa, realçando uma sintonia perfeita.

Didi nasceu para ser João Grilo, e a maneira como engana a todos sempre visando se dar bem no final não passa desapercebida – este é, aliás, um dos únicos casos em que ele termina com a mocinha. Já Dedé é um Chicó perfeito, a ‘escada’ ideal para os planos do colega. Zacarias se move entre o afeminado que sempre interpretou e o ingênuo que as crianças viam, dividindo-se entre as duas composições. Mas ainda mais surpreendente é ver Mussum como o Frade quase mudo, cujas únicas palavras terão relevância fundamental para os destinos de todos, e também dando vida a um Jesus sério, porém nunca mau-humorado. Para se ter uma ideia, ele não pede uma vez sequer por ‘mé’ (cachaça, no seu linguajar tão peculiar) e nem utiliza a terminação “is” nas palavras, do modo que lhe era característico. O trapalhão cria um tipo à parte, mostrando que, além do estereótipo que lhe servia de maneira confortável, havia um ator completo e pronto para atender a novos desafios.

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Mais do que uma história tipicamente brasileira, no entanto, Os Trapalhões no Auto da Compadecida é a prova irrefutável de que o sucesso do grupo não foi mera obra do acaso. Além de serem mestres em se comunicar com o grande público, também mantinham um olhar atento ao que se vivia no país naquela época, usando de suas armas – o riso – para comentar e criticar de forma incisiva os problemas da nação. Corrupção, infidelidade, coronelismo, falsa moral e traições nos mais altos níveis são expostas na tela a todo instante, porém nunca de modo agressivo ou violento. Assim, Farias e Suassuna foram capazes de construir essa obra imortal do cinema nacional, aliados a um fenômeno que dificilmente será esquecido. Uma obra única, precisa em sua análise e eficiente em todos os objetivos a que se propõe.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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