Crítica


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Sinopse

Lucas está participando de uma dinâmica em que todos precisam fingir ser outra pessoa. No entanto, cada dia alguém some e Lucas parece ser a única pessoa a estar percebendo tudo isso. Será que ele também sumirá?

Crítica

Lucas (Juan Grandinetti) é apresentado como um ex-sucesso mirim que atualmente está estagnado. Quando não tem desempenhos ruins em testes para comerciais, ele trabalha numa central de atendimento telefônico. Aliás, se o cinema precisasse pagar 10 centavos de real sempre que atrelasse call centers a fracassos, alguém certamente estaria milionário. E em Os Inventados essa situação é apenas um clichê, mesmo, nem de longe subvertido como em Desculpe te Incomodar (2018) – que reflete sobre um capitalismo maluco por meio dessa atividade. Bom, fato é que essa produção argentina selecionada para a 45ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo avança de modo morno rumo à apresentação de sua situação deflagradora. Nada de muito marcante acontece até que Lucas decida participar de um workshop para candidatos ao estrelato como ele. Se bem que os realizadores Leo Basilico, Nicolás Longinotti e Pablo Rodríguez Pandolfi nem fazem questão de confirmar se o sujeito deseja efetivamente voltar a ser famoso ao perseguir a vida artística. Mas, voltando à dinâmica, ela consiste num confinamento de quatro dias com outros quatro atores/atrizes. A única regra é que todos os participantes devem construir um personagem e vive-lo ao longo do processo. Ninguém pode agir fora dos personagens. Portanto, Lucas não pode ser Lucas. Então, ele decide ser o dermatologista Mati.

O orientador do workshop cita simulacros e faz uma piadinha com o fato de não existir internet no local, cravando a frase: “no hay banda...larga”. E a sentença tende a acender uma luz de alerta da cabeça de alguns espectadores, sobretudo nos habituados com a singular carreira do cineasta norte-americano David Lynch. Sim, pois “no hay banda” (a banda não existe, em tradução bem livre) é o que o mestre de cerimônias do Clube Silêncio fala numa das mais importantes cenas da obra-prima Cidade dos Sonhos (2001). Certamente não estamos diante de uma coincidência. Isso porque no filme estadunidense, especificamente na passagem citada, temos um apresentador falando justamente de simulações, de sons que ouvimos sem que haja uma banda, de vedetes que nos emocionam ao fingir cantar, de algo que é sem ser. Mas, antes dos ávidos imaginarem que o exemplar argentino mergulha fundo no paralelo com o filme de Lynch, é aconselhável tirar os cavalinhos da chuva. Isso porque as produções não poderiam ser mais diferentes, embora proponham coisas bem relativamente próximas. As diferenças estão na profundidade das proposições, na destreza para transitar entre realidade e ilusão, bem como na capacidade para lidar com o indeterminado. Leo Basilico, Nicolás Longinotti e Pablo Rodríguez Pandolfi estão a léguas de distância do autor de assombros como A Estrada Perdida (1997).

A trama de Os Inventados inexplicavelmente nem faz uma força considerável para transformar o mistério em algo angustiante ou embaralhar as coisas. Lucas flerta abertamente com uma das colegas de retiro, passeia pela propriedade travando diálogos banais com os demais, sem deixar marcas evidentes naquela circunstância. Leo Basilico, Nicolás Longinotti e Pablo Rodríguez Pandolfi não nos instigam a, por exemplo, tentar imaginar o quanto os atores estão levando de si para as suas criações. Estaria o protagonista externando um desejo (seu? De alguém mais?) ao imaginar para sua vivência um dermatologista ocupado? Seu interesse romântico (uma produtora de elenco) estaria projetando desejos interditados ao bolar toda a história de uma musicista preocupada com as provas do conservatório? Em nenhum instante essa tensão entre a realidade e a ficção é estimulada para propor uma charada ao espectador. Lucas fala de um sonho que teve, adiante existe uma coincidência pretensamente inquietante envolvendo amuletos japoneses, mas nada disso ganha destaque ou serve para tornar denso um jogo de cena rapidamente esvaziado. Mas, então a trinca de cineastas ensaia transformar o longa-metragem num exercício de suspense. E isso acontece quando as pessoas começam a desaparecer da propriedade, uma a uma, sem exceções. Diariamente, alguém some sem deixar vestígios.

Lucas acorda num dia e alguém se escafedeu. Quando ele questiona os colegas restantes, ninguém se lembra de mais alguém ali no dia anterior. E isso vai se repetindo, dia após dia, ou seja, o grupo vai sendo reduzido. E o que Leo Basilico, Nicolás Longinotti e Pablo Rodríguez Pandolfi fazem com isso? Não muito. Os cineastas basicamente se contentam em mostrar o protagonista cada vez mais intrigado com tudo aquilo, embora não ao ponto disso lhe causar tanto desassossego. Isso porque ele intui que essa estranheza toda deve fazer parte do exercício em curso. Em nenhum momento Os Inventados potencializa a dúvida, tampouco ensaia um embaralhamento entre a realidade e as percepções de Lucas. Somente quando sobram ele e mais uma é que há a tentativa de misturar as camadas da experiência. Será que Beltrano nunca existiu realmente? Será que Fulana se perdeu indefinidamente no personagem? Será que tudo não passa do delírio da ex-celebridade mirim que atualmente é um João Ninguém? Triste é que nem essas questões se consolidam. O enredo avança meio em banho-maria, nem colocando em xeque a jornada do protagonista apático e muito menos engrenando rumo a uma confusão radical. Quando o trio de cineastas tenta isolar o sujeito como alguém lúcido (ou ignorante?) num entorno que destoa por ser caótico (ou ciente?), tudo já está bem comprometido pela inércia de antes.

Filme visto online durante a 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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