O Vento Muda

Crítica


7

Leitores


2 votos 8

Onde Assistir

Sinopse

Jovem camponesa, Pauline cria cotidianamente seus animais demonstrando um profundo respeito pela natureza. A chegada de Samuel, sujeito encarregado de instalar uma turbina eólica na localidade, vai modificar sensivelmente seu lar e colocar em crise boa parte de seus valores.

Crítica

As dicotomias ditam a narrativa de O Vento Muda, bem como a existência de sua protagonista, Pauline (Mélanie Thierry). Da citação à autora britânica Rebecca West, servindo de prefácio ao longa, sobre a ambivalência humana e seus sentimentos – sanidade e loucura, prazer e dor, felicidade e sofrimento – à sequência inicial em meio a uma tempestade noturna, na qual Pauline e seu companheiro, Alex (Pierre Deladonchamps), buscam socorrer uma das vacas de sua fazenda prestes a dar à luz a um bezerro – que não sobrevive ao parto – a cineasta suíça, Bettina Oberli, expõe como vida e morte, começo e fim, invariavelmente, caminham lado a lado. Tal constatação acaba sendo acentuada pela escolha de Pauline por uma vida longe da civilização, ao lado de Alex. Uma espécie de regresso à essência, convivendo em maior comunhão com a natureza, sem celulares ou outros adventos tecnológicos modernos.

20200128 o vento muda papo de cinema 4

O fator conflitante presente nessa escolha acaba sendo potencializado quando o casal decide instalar um gerador eólico em sua propriedade, para que possam ter energia elétrica de fonte natural e renovável. O acontecimento que deveria selar a completude desse sonho/projeto de vida, contudo, termina justamente por provocar seu desmoronamento, colocando em xeque as certezas, sentimentos e mesmo o relacionamento de Pauline e Alex. Esse desequilíbrio coincide também com a entrada de dois personagens alheios à realidade particular do casal. A primeira é Galina (Anastasia Shevtsova), jovem ucraniana vinda de Chernobyl, por meio de um programa assistencial, para passar uma temporada em meio à natureza tratando de sua saúde. Mas é mesmo a segunda figura que surge como o agente principal da ruptura: Samuel (Nuno Lopes), o engenheiro de origem portuguesa responsável pela instalação da turbina eólica.

Já em sua chegada, o personagem reforça a característica dicotômica da trama, ao atropelar um dos porcos da fazenda. Sua presença vem acompanhada da morte, significando ao mesmo tempo a possibilidade de fim e de início para Pauline, que após uma repulsa momentânea acaba desenvolvendo atração por ele. Oberli expõe as peças e arquiteta a situação desse conflito sem muitos rodeios, se valendo da economia narrativa, e por vezes da fragmentação – que se reflete na montagem de determinadas cenas, especialmente nas de sexo – para apresentar motivações e dinâmicas, como a do casal central, sendo Alex o mais radical em sua postura, enquanto Pauline, ainda que compartilhando em grande parte do mesmo sentimento, se mostra mais oscilante – como na questão sobre aceitar ou não que sua irmã, veterinária, trate dos animais da fazenda.

20200128 o vento muda papo de cinema 1

Em certos momentos, essa economia resvala na simplificação excessiva, com algumas questões se resolvendo rápido demais, caso da adaptação de Galina à vida campestre – que se insinuava inicialmente como algo mais complexo – ou mesmo a própria mudança de percepção de Pauline a respeito de Samuel. Ainda assim, Oberli oferece estofo suficiente para que se compreendam os dilemas de sua protagonista, que vê a ideia de liberdade contida em seu modo de viver se confundir com o aprisionamento e o isolamento. Neste ponto, Galina acaba servindo, além de confidente, como um catalisador desse sentimento libertário – vide a sequência em que as duas vão à festa na cidade. Dando foco total ao conflito interno de Pauline, por vezes em detrimento de um desenvolvimento mais profundo dos personagens que a cercam, Oberli encontra uma representação potente na atuação de Mélanie Thierry.

A entrega emocional da atriz deixa transparecer todas as fragilidades e contradições da personagem, bem como o seu desejo, tanto o carnal quanto o de fuga, que encontra em Samuel – o forasteiro aventureiro, sem raízes, que fala diversos idiomas – a válvula de escape ideal e um contraponto radical a Alex. No atrito entre esses dois mundos, a relação com o engenheiro se mostra não uma resposta definitiva, mas algo simbólico da chance de mudança, de se deixar pelos rumos do vento, como sugere o título. Estes simbolismos de O Vento Muda, por sinal, são construídos imageticamente com esmero pela cineasta, como a própria imagem da turbina eólica, sonora e visualmente imponente, funcionando como lembrete constante das angústias da protagonista.

20200128 o vento muda papo de cinema 3

Outro exemplo é bela sequência da neblina na estrada, carregada não apenas de tensão sexual, no primeiro contato físico de Pauline e Samuel, mas também de uma tensão alegórica, do ato de se deslocar por um caminho impreciso, sem que se tenha uma visão clara do que vem à frente e correndo-se o risco de cair do precipício. Um risco que sinaliza à tragédia que paira sobre o terceiro ato e que vem carregado novamente da ambivalência fim/(re)começo, com Oberli colocando Pauline frente ao precipício pela segunda vez. Sendo esta, agora, não mais uma representação do perigo da queda, mas do olhar para vastidão do espaço e das possibilidades que o futuro reserva.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
avatar

Últimos artigos deLeonardo Ribeiro (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *