Crítica

Michel (Christian Clavier) só queria ouvir em paz um recém-adquirido e raro disco de vinil. No caminho do sebo até sua casa, ele ignora ligações, faz pouco de compromissos, negligencia a dor de dente de um paciente, enfim, demonstra que a única coisa verdadeiramente importante no momento é ter uma hora de contato solitário com aquela beleza pela qual pagou uma bagatela. A interrupção de sua esposa, Nathalie (Carole Bouquet), é apenas a primeira de muitas que frustram os planos tão milimetricamente traçados. Baseado na peça de Florian Zeller, O Que Eu Fiz Para Merecer Isso? se dá numa sucessão de acontecimentos que entravam a audiência tão esperada pelo protagonista, e, ao mesmo tempo, transformam aquele dia numa montanha russa de manifestações e sentimentos. Esse acúmulo de situações insólitas é o passaporte do ridículo, elemento que se insere de maneira afetuosa.

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Mas, o que realmente define o martírio de Michel são os personagens periféricos. Ele é pai de um rapaz (desempregado) com sérias inclinações às causas socialistas, marido de uma mulher acometida pela culpa, vizinho de um cara chato que insiste na festa para agregar os moradores do prédio, amante da melhor amiga da esposa, além de patrão de uma doméstica intrometida e dos “poloneses” incumbidos da reforma de seu apartamento. Sempre que Michel coloca a agulha no disco e os primeiros acordes da clarineta ecoam pela sala, alguma coisa acontece, o impedindo de seguir adiante. Em O Que Eu Fiz Para Merecer Isso? a graça está justamente em acompanhar a via-crúcis de um colecionador que não consegue aproveitar, quiçá, sua conquista mais árdua a aguardada. Esse esquema se altera com a crescente participação das demais pessoas e as questões que elas trazem consigo.

Se inicialmente Michel relativiza até as mais bombásticas revelações, pois visivelmente ávido para escutar seu vinil, o acúmulo de interferências lhe nega gradativamente a benção da alienação. Traições, problemas com o encanamento, dificuldades de relacionamento entre os condôminos e mentiras concernentes à nacionalidade dos empreiteiros formam uma bola de neve que não pode ser ignorada, nem mesmo por Michel. O Que Eu Fiz Para Merecer Isso? conserva sua vocação cômica, boa parte, em detrimento da possibilidade dramática oferecida pelos subtextos que emergem em meio a uma confusão aparentemente interminável. À singularidade do protagonista se contrapõe a essência arquetípica dos coadjuvantes, uma convivência encarregada de potencializar o humor em cena e de trazer à baila o patético e o inesperado, atributos que regem o grosso das interações.

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O Que Eu Fiz Para Merecer Isso? resvala em assuntos espinhosos. A questão migratória, por exemplo, não é utilizada com vista à reflexão, mas como dado qualquer, numa jornada que tinha tudo para ser comum. Patrice Leconte evita que as piadas percam força por esgotamento, preservando a cadência narrativa dos abalos decorrentes das reiterações. Com direito a festa imprevista no apartamento, segredos vindo à tona com profusão semelhante a da água que se esvai pelo buraco dos canos danificados, reconfigurações familiares e afins, este filme é um divertimento leve e agradável. A qualidade das atuações, principalmente as de Christian Clavier, Carole Bouquet e Stéphane De Groodt (intérprete do vizinho impertinente), sem esquecer nessa seara da participação impagável da almodovariana Rossy de Palma, e o roteiro esperto, compensam a falta de um maior apuro visual, proporcionando um resultado, senão brilhante, ao menos pitoresco e engraçado.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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