Crítica


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Sinopse

Um jovem engenheiro de férias numa cidade provinciana conhece um menino que logo lhe chama a atenção. A cidade desconfia da ligação forte entre ambos. O menino some e o forasteiro é acusado de assassinato.

Crítica

Filmar o vento representa um desafio particular. Por definição, não se filma o vento em si, mas o reflexo do mesmo nos elementos ao redor: as árvores chacoalhando, um chapéu voando, as janelas de casa batendo. A ideia de tornar o vento o personagem principal deste longa-metragem dialoga muito bem com seu discurso, focado não exatamente nos sentimentos do adulto José Roberto Nery (Ênio Gonçalves) pelo garoto Zeca da Curva (Luiz Fernando Ianelli), e sim na impressão do povoado a respeito do relacionamento entre eles. Embora o roteiro se converta num filme de tribunal, onde o protagonista é julgado pelo desaparecimento do menino, o verdadeiro julgamento se encontra nas ruas da cidade: as mulheres temem o réu, ainda que o desejem, os homens desejam massacrá-lo, a mídia o taxa de “monstro” para tornar as manchetes mais interessantes. Assim como o vento fortíssimo da cidade, José Roberto e Zeca da Curva desaparecem quando querem e deixam marcas na vida ao redor. Não por acaso, quando o garoto some, o vento se interrompe.

O drama de Carlos Hugo Christensen efetua ótimo uso do vento enquanto metáfora onipresente do desejo sexual: não se sabe explicar como chega, em que horas, e em qual intensidade, ou quais pessoas irá afetar. O vento é invisível, incontrolável e, ao mesmo tempo, impossível de ignorar. O Menino e o Vento (1967), baseado no conto O Iniciado do Vento, de Aníbal Machado, possui como único conflito a provável homossexualidade de José Roberto, embora ninguém tenha coragem de pronunciar o termo. A respeito da proximidade entre o adulto e o menino, ambos interessados no vento de Bela Vista, interior de Minas Gerais, o advogado da defesa questiona seu cliente: “Que outra afinidade poderia haver, senão... sexual?”, ao que a câmera efetua um zoom dramático no rosto no engenheiro. “Sou um anormal. Eu não se sinto como todos”, ele confessa ao tribunal. “As minorias devem proteger-se: judeus, comunistas, nós”, confessa baixinho um rapaz gay no vilarejo, que flerta com o protagonista. Mesmo quando o julgamento começa, uma voz protocolar lê os autos: “A comarca de Santa Fé acusa o engenheiro José Roberto...” e a cena se encerra – a montagem interrompe a frase antes de concluir a acusação. O filme, primeiro longa-metragem do cinema brasileiro tendo a homossexualidade como tema, evita a todo custo falar nomeá-la.

O motivo poderia ser a censura às artes na década de 1960 – afinal, o projeto foi lançado durante a ditadura militar -, mas também corresponde à ideia de fobia que permeia a trama. A atração por uma pessoa do mesmo sexo constitui um medo para todos os personagens, inclusive José Roberto e Zeca da Curva (ambos com namoradas, e considerando a si mesmos como heterossexuais, pelo menos até se conhecerem). Os personagens ficam amedrontados pelo caso, considerado aberração religiosa ou afronta aos costumes. Existe evidente mistura de desejo, inveja e ciúme no caso íntimo tornado público: Laura (Wilma Rodrigues), bela mulher rejeitada por José Roberto, se vira contra ele em vingança por não se sentir desejável, enquanto o escrivão (Odilon Azevedo), que também controla a mídia na cidade, dispara a ira contra o réu por sentir que Laura prefere o jovem engenheiro a si próprio. Algumas pessoas rejeitam a sexualidade ambígua de José Roberto por se sentirem iguais a ele, ou por sentirem que ele possui algo diferente dos demais. Afinal, trata-se de um homem rico e culto numa cidadezinha pobre, onde as pessoas possuem instrução limitada. Ele vem da cidade para o campo, e acredita na privacidade diante de pessoas acostumadas a vigiarem a vida uma das outras. A modernidade e a tradição se confrontam nesta pequena fábula sobre a aversão pelas diferenças.

Dezessete anos mais tarde, Adélia Sampaio levaria a homossexualidade feminina ao tribunal em Amor Maldito (1984). O princípio é semelhante: a mulher lésbica acusada pela decadência de sua namorada, sendo de fato julgada por sua orientação sexual. No entanto, enquanto Sampaio privilegia uma abordagem realista e referencial (revelando exatamente o que aconteceu entre as duas mulheres, e aguardando até o veredito final), Christensen privilegia a poesia. Mesmo diante dos flashbacks entre os protagonistas, ainda é possível nutrir múltiplas interpretações a respeito dos sentimentos de um pelo outro. Além disso, as cenas envolvendo a dupla surgem apenas no terço final da narrativa, depois que a cidade mineira tomou uma decisão baseada em pulsões próprias: eles desejam que José Roberto seja homossexual e seja punido, para legitimarem o seu ódio. O possível veredito contra o engenheiro constituiria uma prova aos cidadãos conservadores de que eles têm o direito de odiá-lo. O jogo de projeções e pulsões se torna bastante complexo neste drama. Para a nossa surpresa, o cineasta encontra saídas belíssimas para evitar o veredito como desfecho absoluto, permitindo uma leitura aberta sobre o desfecho.

O vento – novamente ele, como se Zeca reaparecesse e calasse a todos por sua presença – trata de julgar as vozes difamadoras, que esticam o pescoço para devorar cada palavra do “monstro” em julgamento. O filme retrata muito bem o prazer de odiar outra pessoa, a vontade profunda de estar perto do homem considerado perigoso, para poder colocar um rosto, um corpo no objeto de repúdio. Pensando em termos sintomáticos e retrospectivos, esta configuração representa muito bem a cultura do ódio provocada pela política de extrema-direita pós 2018, onde se elege um vilão (o comunismo, o principal adversário político, o STF) para que possamos despejar a nossa raiva contra estruturas sociais que não nos beneficiam (ou não beneficiam apenas a nós). Christensen trabalha a psicologia dos personagens de modo denso ao apostar em cenas metafóricas: a nudez do garoto na ventania, a capacidade dele em “controlar” o vento na região, o erotismo quando José Roberto se despe em frente ao espelho, a descrição do vento que invade o quarto de Zeca da Curva para “lamber os olhos” do garoto. A sensualidade está longe das referências padronizadas de corpos lânguidos e vozes sussurradas: ela provém da natureza, das árvores, do riacho, das montanhas. Por isso, não seria aberrante nem digna de julgamentos.

O Menino e o Vento pode soar tímido demais para um “primeiro filme LGBT” da nossa cinematografia. Afinal, a homossexualidade sequer é mencionada, não há beijo ou concretização efetiva dos sentimentos entre José Roberto e Zeca da Curva. A união não possui horizonte otimista, tendendo à tragédia. Em paralelo, os sentimentos de um adulto por um adolescente poderiam abrir brechas para a aproximação entre homossexualidade e pedofilia, tão explorada há mais de um século por vozes religiosas. Ora, Christensen retrata uma ideia de amor puro, não desprovido de desejo, porém livre de rótulos e amarras sociais. Nenhum deles se esconde, por não terem consciência do que sentem um pelo outro, e por não sentirem que fazem algo errado. Além disso, a homossexualidade é tratada menos como um fenômeno íntimo do que uma questão da sociedade. Seria redutor limitar o episódio marcante na vida do réu a um impulso inédito em direção ao mesmo sexo. Por isso, o filme expande seus significados: o caso diz respeito à sexualidade de José Roberto, de Zeca da Curva, de Laura, do escrivão, do rapaz gay que depõe contra o réu por ter sido rejeitado por ele. Ou seja, a orientação sexual não diz respeito apenas ao indivíduo, nem pode ser contida “entre quatro paredes”, como pretendem os conservadores que manifestam a sua sexualidade abertamente nas ruas. O momento em que o protagonista, mesmo ameaçado de morte, decide caminhar pelas ruas da cidade retrata o orgulho de ser como é, a recusa de viver na vergonha. Esta representação constitui um passo considerável para a imagem de indivíduos LGBT no cinema brasileiro.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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