Crítica
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Sinopse
O príncipe nórdico Amleth vive na Islândia no começo do século X. Depois que seu pai é brutalmente assassinado, ele transita pelas terras ermas de seu país numa jornada sangrenta e impactante de vingança.
Crítica
“Eu vou vingá-lo, pai! Eu vou salvá-la, mãe! Eu vou matá-lo, Fjölnir”.
Do mantra repetido diversas vezes pelo protagonista de O Homem do Norte ao longo de sua jornada, é curioso chegar ao final deste percurso e perceber que apenas uma (ou duas, dependendo do ponto de vista) dessas promessas ele foi capaz de cumprir. Afinal, eis aqui um épico à moda antiga – porém embalado com toda a pompa e circunstância que o cinema moderno permite – centrado na busca pela vingança, no qual o herói ultrajado ainda na infância dedicará o resto dos seus dias a uma única missão. Robert Eggers é um cineasta que, apesar da pouca experiência – este é recém seu terceiro longa-metragem, após os impactantes A Bruxa (2015) e O Farol (2019) – tem se mostrado cada vez mais atento a um registro autoral. Dessa vez, porém, abandona pela primeira vez o trabalho independente – e potencialmente livre de amarras comerciais – em nome de uma incursão sob o comando de um grande estúdio (Universal, no caso). Esse novo modus operandi não passa desapercebido, e ainda que a mão do diretor se faça presente, as interferências externas podem, facilmente, ser apontadas aqui e ali. Eis, portanto, uma obra híbrida, que ao mesmo tempo em que se mostra feliz de acordo com os intentos do realizador, também oferece um ou outro tropeço em nome de uma audiência maior – e menos exigente.
A premissa é clássica: jovem testemunha o pai, o rei Aurvandil (Ethan Hawke, uma figura de autoridade), ser assassinado pelo próprio irmão, Fjölnir (Claes Bang, de The Square: A Arte da Discórdia, 2017, que impõe tanto medo – em suas aparições iniciais – como fragilidade – da metade em diante – mas nunca de modo ostensivo). Quando esse assume o trono, se torna conhecido como o “Sem Irmão”, toma a esposa do falecido para si e condena o herdeiro legítimo à morte. Esse, apesar de declarado morto, consegue fugir, apenas para retornar décadas depois para retomar o que é seu por direito. Já na pele de Alexander Skarsgard, Amleth é pura fúria e selvageria, a ponto de ser apontado como o “Homem-Urso”. Ele sabe que terá que passar pelas piores provações até se aproximar do seu intento e ter condições de realizá-lo de acordo com o que planejou. Não por acaso, durante esse caminho, irá se deparar com as previsões de uma bruxa (Björk, em participação especial, porém marcante) que servirão para reforçar sua busca, assim como acontecerá a união com aquela que não apenas aquecerá suas noites, mas também manterá acesa a determinação que o guia frente a tantos desafios (Anya Taylor-Joy, adequada, ainda que discreta).
A escolha do elenco se mostra fundamental para o sucesso de uma empreitada como essa, de tantos e diversos riscos. Se por um lado Eggers recorre à atores com os quais trabalhou em ocasiões anteriores (além de Taylor-Joy, há também Willem Dafoe, sempre efetivo, por menor que seja o personagem que lhe é destinado), o que certamente lhe garante alguma zona de conforto, há também acréscimos de peso que terminam por fazer a diferença. Skarsgard, atuando também como produtor, se mostra perfeito como o bruto cego por algo que o consome por dentro. Ainda que isento de nuances – suas intenções são bastante claras – ele imprime uma veracidade a um tipo tão arquetípico que sua dor será também compartilhada com a audiência, tanto que cada demonstração de vigor e superação não passará à margem dos acontecimentos. Ele é a base de sustentação de uma trama que, na maior parte do tempo, insiste em se manter na superfície, mesmo tendo muito no que mergulhar. Esses vislumbres se dão, felizmente, sem maiores explicações ou didatismos, invadindo um terreno no qual a imagem irá se encarregar de apontar as direções a serem percorridas.
Por fim, importante destacar também a presença de Nicole Kidman, tanto o maior acerto como grande tropeço do elenco. Ela, que foi esposa de Skarsgard na série Big Little Lies (2017-2019), agora se esforça para soar convincente ao se apresentar como mãe do mesmo ator. A passagem do tempo, que para ele resultou na troca de uma criança por um astro de 45 anos, no caso dela a manteve quase imutável. Um estranhamento, portanto, se confirma, mas não incontornável. Afinal, Eggers dota sua história de um misticismo quase palpável, de manifestações religiosas à superstições ancestrais, e entre corvos salvadores e reis mortos lutando por antigos tesouros, uma beleza rara incapaz de envelhecer parece ser um capricho menor. Ainda mais quando sua entrega, ao menos em dois momentos específicos, suplantam qualquer desculpa. Sua rainha Gudrún é pura dissimulação e serventia, dona de dois ou três objetivos além daqueles especulados pelos ao seu redor, e disposta a sacrifícios inimagináveis para ter o que deseja. De incesto ao filicídio, se mostra capaz do que estiver ao seu alcance, jogando com as cartas conforme essas lhes são expostas. Kidman permite aos poucos o vislumbre de uma personalidade pérfida, mas não alheia aos acontecimentos, e por isso real, elevando a alegoria a um ponto concreto e, assim, ainda mais assustador.
Se Robert Eggers consegue imprimir na tela todo o sangue necessário para fazer dessa uma trilha de caos e sofrimento, há um preço a ser pago por tamanha liberdade. É no desfecho um tanto apressado, como uma retomada de curso nos instantes finais, que se percebe com maior evidência um impasse entre a necessidade de um campo aberto para uma possível continuação e o anseio de um realizador preocupado apenas com o conto em si. Esteta de grande apreço visual, faz de O Homem do Norte um deslumbre aos sentidos, de forte impacto, enquanto revela preocupação em não deixar a narrativa num segundo plano. Assim, a maneira como vai espalhando a febre dessa saga e as (muitas) perdas e (poucos) ganhos pelos quais as peças desse quebra-cabeça se digladiam entre si reforçam esse caráter pelo mínimo ao qual se dispõem a abraçar a morte. Afinal, por mais que se mostrem vikings poderosos capazes de lançar sombra por muitas gerações – essa é a fábula que teria servido de inspiração para Hamlet, de Shakespeare – são não mais do que formigas lutando por resquícios de pouca valia. Vistos de perto, assustam pela selvageria. Mas basta se afastar para que sua real natureza fique evidente: insetos, destinados à pequeneza e ao esquecimento. E é essa ciência que eleva o conjunto além do descartável.
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