Crítica

Existe uma grande gama de perdedores nas histórias criadas por Ethan e Joel Coen. Mas talvez o mais querido deles seja um sujeito que não aceita ser chamado de outra forma se não de “Dude”. O “Cara”, em bom português, é do tipo que assina cheque pré-datado para uma quantia de 69 centavos. É daqueles que não se preocupa com nada, a não ser em quando conseguirá fumar seu próximo baseado ou tomar seu próximo drink, o White Russian. O personagem de Jeff Bridges é tão perdedor que nem o filme leva o seu nome. O Grande Lebowski é, na verdade, outro homem, um ricaço que tem sua esposa sequestrada e, para reavê-la, conta com a ajuda de seu homônimo pobretão. Com sequências oníricas engraçadíssimas, personagens excêntricos e trilha sonora pinçada a dedo, o longa-metragem dos irmãos Coen, lançado em 1998, pode não ter sido um grande sucesso à época, mas ganhou um consistente status cult que é  completamente justificável por suas qualidades.

O roteiro é assinado pelos Coen, baseado livremente em um romance policial de Raymond Chandler. Dude (Bridges) passa seus dias jogando boliche com seus amigos, o veterano de guerra e judeu convertido Walter Sobchak (John Goodman) e o lento boa praça Donny (Steve Buscemi). Sua vida é empurrada com a barriga sem grandes preocupações. Até o dia em que ele é confundido com outro Lebowski e vê seu adorado tapete da sala (que dava vida ao ambiente) ser estragado por um capanga que cobrava dinheiro. Atordoado pelo acontecido, Dude vai à procura do Grande Lebowski (David Huddleston) lhe cobrar um tapete novo. Nisso, ele conhece o afetado ajudante do seu homônimo, Brandt (Philip Seymour Hoffman) e a esposa do ricaço, Bunny (Tara Reid). E a partir deste encontro, sua vida vira de cabeça pra baixo. Bunny é raptada e Lebowski contrata Dude para ajudá-lo a entregar o dinheiro do resgate. Mas nada é o que parece ser nesta trama que ainda apresenta a filha do personagem título, Maude Lebowski (Julianne Moore), uma artista de espírito livre; um trio de niilistas capitaneado por Karl Hungus (Peter Stormare); um jogador de boliche pederasta e autoconfiante chamado Jesus (John Turturro); e um cowboy existencialista conhecido como The Stranger (Sam Elliott).

Como é possível perceber, nada é estranho o suficiente para a trama de O Grande Lebowski. E aí reside a graça desta história. Como bons suspenses que se prezem, existe o popular mcguffin (algo que os personagens procuram, mas que não tem real importância, apenas existindo para a história andar) e diversas reviravoltas que parecem não fazer sentido algum, mas que são muito bem orquestradas pelos roteiristas. No fim das contas, por mais idas e vindas que tenha a trama, ela nunca é mais interessante que os personagens que a habitam. Este é o verdadeiro mérito do filme assinado por Joel Coen (e Ethan, não creditado): o universo riquíssimo de personagens extravagantes que passeiam pela tela e divertem o espectador com suas idiossincrasias.

Jeff Bridges encarna o papel de sua carreira em O Grande Lebowski. Totalmente relaxado, vivendo – segundo ele – uma versão de si mesmo, Dude é aquele sujeito que o espectador torce para se dar bem, mesmo sabendo que existem chances mínimas de sucesso. Sua lentidão de pensamento só é compensada pela sua característica agregadora, pacífica. Ele é um homem contra conflitos em um momento completamente belicoso. A história se passa em 1991, no início da guerra entre Estados Unidos e Iraque, e o melhor amigo de Dude é um veterano do Vietnã que adora armas e tem sérios problemas com sua raiva. Este personagem é encarnado com precisão por John Goodman, um dos atores preferidos dos irmãos Coen. Não é à toa esta predileção. Ele entrega suas falas e encarna o personagem de forma tão gutural que é facílimo esquecer que existe ali um ator. Walter é caricato, sim. Mas esta caricatura é desenhada de forma consciente pelos diretores e pelo intérprete, que fazem uma crítica potente a respeito dos tarados por guerra que existem aos montes na América.

Concentrar elogios a dupla principal e esquecer do time de coadjuvantes de peso seria um erro imperdoável. Desde Sam Elliott, que aparece em uma ponta divertida, passando por uma segura Julianne Moore e culminando em um alucinado John Turturro, todos os nomes tem seu tempo de brilhar. Novamente acertando em cheio na direção de arte e figurinos, os irmãos Coen criam cenários que conversam completamente e enriquecem a composição dos personagens que passeiam na tela. A começar pelo tapete de Dude, as pinturas de Maude e a indumentária esquisita de Jesus. Tudo se soma.

Outro ponto a ser ressaltado é a trilha sonora, com petardos de Bob Dylan, Creedence Clearwater Revival, Elvis Costello e uma versão matadora de Townes Van Zandt para o clássico dos Rolling Stones, “Dead Flowers”. A música incidental fica por conta do colaborador habitual dos Coen, Carter Burwell, que parece se divertir nas cenas oníricas. Não só ele. O espectador tem muito espaço para risadas e viagens a cada nova trip ácida do amigo Dude.

Uma pena que O Grande Lebowski não teve a resposta de público ou crítica que merecia na época de seu lançamento. Completamente ignorado pelo Oscar ou Globo de Ouro, chegou a ser exibido no Festival de Berlim, mas saiu de mãos abanando. O lado bom é que, com o tempo, as pessoas foram desfrutando melhor dos desdobramentos da história e começaram a curtir mais os personagens, elevando o filme dos Coen a um status de cult. Existe até uma religião baseada nos ensinamentos do Dude - exagero ou apenas uma brincadeira? O que importa é que este trabalho dos Coen diverte tanto quanto promete e deixa vontade de reencontrar os amigos feitos durante aquelas duas horas de loucuras. Uma continuação sempre foi pedida, mas nunca aceita pelos diretores. Talvez um dia?

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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