O Dia do Mineiro
Crítica
Leitores
Sinopse
Em uma obsoleta, porém divertida, cerimônia carnavalesca, todos se divertem. De repente, todos vão para dentro da mina, onde explosivos são comuns, e onde todos encontram refúgio atrás de um número de registro, como um talismã que lhes permite sobreviver ao caos.
Crítica
“No país dele é tudo privatizado, nada mais é estatal”. Algo próximo disso é dito por um dos mineiros que trabalham a quase 500 metros abaixo da superfície das terras da Ucrânia. O Dia do Mineiro, documentário dirigido por Gaël Mocaër, vai com eles até seu local de trabalho e busca captar suas dimensões, sua importância para comunidade local. Sem personalizar o discurso, isto é, sem dar voz específica a um personagem, o que lhe interessa é antes a apreensão geográfica e humana do trabalho do que a experiência de um indivíduo – nada mais coerente com a ideia de coletividade que está sempre ali, cercando tudo. A matéria, o sangue, a força de trabalho, o espaço, eis o âmbito de situações e objetos pelos quais o filme se constroi para o espectador. As imagens do filme de Mocaër mostram, no percurso, algo ainda mais interno ao cotidiano de trabalho nas minas, criam uma cartografia de todo um processo histórico, de um pacto de sangue, incrustado em todos os restos, em todos os rostos manchados do preto do carvão, da poeira que fica presa nas unhas, das anedotas que os trabalhadores vão contando entre si e, no limite, para a câmera, objeto que lhes é bastante estranho, invasor, apesar da recepção aparentemente natural com que lidam com sua presença. Mas há uma História.
É claro que o filme comenta isso, ou melhor, permite que esse contexto se ofereça para a câmera e colabore com ela na construção do registro. Embora seja sempre muito perverso ficar buscando subtextos políticos em qualquer situação exposta, a herança comunista está toda ali, presente nas falas, nos rumores, nos comentários que os trabalhadores fazem, na própria mentalidade das falas e nos olhares desconfiados que os mineiros apontam para a câmera em alguns momentos. As minas, controladas pelo Estado a partir dos Soviéticos (o filme começa justamente no dia oficial do mineiro, herança da União Soviética) não são senão um pouco daquilo que o passado ainda oferece àqueles homens em termos de trabalho, de força de trabalho, daí o comentário, em tom notoriamente satírico, citado no início.
Apesar disso, apesar de qualquer fantasma da História que possa transparecer dos escombros, o filme de Mocaër mantém o olho no que é mais importante para fincar sua carta de intenções: na história do presente, na história do seu filme e das imagens que ele pretende erigir daquele lugar, daquelas pessoas, daquelas narrativas de movimentos. Nesse sentido, é importante perceber que o filme tem uma força que nasce naturalmente da montagem, justamente o momento decisivo, no qual se potencializa o ritmo, se dá corpo e fruição à matéria cinematográfica. É daí que surge essa aparência de tranquilidade, de que aquelas instalações subterrâneas não irão ceder à outra força (na verdade a mesma força, só que menos controlável): as da natureza. É importante para o filme que o espectador não se perca a pensar em desastres, e a montagem parece concebida de maneira a neutralizar a tragédia antecipando o imaginário de quem observa. E essa sensação de segurança não nasce de algum procedimento arbitrário, antes pelo contrário. Os personagens estão sempre jogando as coisas para cima, falando do quanto ganham, caçoando do diretor, comentando a câmera, o tempo da filmagem e o orgulho do trabalho. A rigor, a premiação dos mineiros, momento chave que encerra o filme, vem coroar isso tudo.
Todo o trabalho realizado, o esforço direcionado no setor primário da economia se transfere, ele também, para os corpos ali presentes (Mocaër não nos dá muito dos rostos, das rugas, das expressões de cada um), filmados em conjunto, organizados à espera de uma recompensa, símbolo e iconografia máxima de tudo o que veio antes, o que se construiu e o que se destruiu. É que a simplicidade das coisas pode estar sempre lá onde parece que só existe o horror e o caos: numa dança encenada por apenas um par de dançarinos, que seja. Parece ser esse o desafio do documentarista, encontrar justamente os pequenos acontecimentos em meio a todas as limitações e situá-los com carinho no espaço do registro.
Últimos artigos dePedro Henrique Gomes (Ver Tudo)
- Violet - 16 de abril de 2014
- A Estranha Cor das Lágrimas do Seu Corpo - 13 de abril de 2014
- As Filhas - 12 de abril de 2014
Deixe um comentário