Crítica


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Sinopse

Os anos 1980 foram marcados por um imenso acidente nuclear em Goiânia, o segundo maior do mundo. Dois catadores espalharam radiação acidentalmente pela cidade enquanto manipulavam um antigo aparelho de radioterapia.

Crítica

É comum a cinefilia organizar na gaveta de “experimental” qualquer obra que fuja aos cânones do cinema clássico. Caso adote rumos distintos do drama tradicional, do musical típico, das animações ou documentários habituais, será organizada sob este rótulo conveniente, que corresponde à opção “nenhuma das anteriores” nesta categorização audiovisual de múltipla escolha. No entanto, algumas obras se prestam de fato à experimentação de imagens, sons e discursos, a exemplo do curta-metragem O Dente do Dragão (2022), dirigido por Rafael Castanheira Parrode. O filme se baseia em intervenções digitais a partir de materiais preexistentes — longas-metragens do cinema mudo, reportagens de televisão, imagens abstratas, material de arquivo amador, fotos de famílias goianas. O trabalho ostensivo sobre a película e o digital, rasgando-os, tingindo-os e subvertendo-os, se converte em meio e finalidade da experiência. Os letreiros de abertura alertam à presença de imagens estroboscópicas, cujo efeito pode afetar espectadores com propensão a ataques epilépticos. Neste caso, o audiovisual possui um impacto físico, literalmente: ele incomoda, ao invés de agradar aos olhos. Alguns cineastas se esforçam em tornar o dispositivo invisível ao espectador, para que este imerja na narrativa sem sobressaltos, acreditando de fato no que vê. Parrode, pelo contrário, nos relembra a cada instante do fato de estarmos diante de um filme, uma construção artificial por excelência.

As manipulações de registros de arquivo se prestam a um tema único, capaz de costurar a narrativa: o episódio do acidente radioativo com Césio-137 em Goiânia, em 1987. Cada metáfora encontrada pelo autor oferece uma representação livre desta catástrofe: o trecho de Os Nibelungos (1924), de Fritz Lang, alude à chegada de uma monstruosidade cujo sangue contamina as águas (a mudança de cores favorece a compreensão de um líquido espesso, radioativo). No final, outra imagem da perigosa natureza retorna à narrativa: Godzilla surge no horizonte japonês para simbolizar uma tragédia se voltando contra os moradores, numa forma de vingança e retaliação. Entre o epílogo e o desfecho, reportagens da época mencionam nominalmente as vítimas na cidade, e a montagem se encarrega de soterrar as vítimas por analogia: a terra revirada por uma escavadeira se sobrepõe à rara fotografia preservada de uma família da época. Os ideais de liberdade individual e de opressão do governo se encontram no trecho surrealista da bailarina executando sua arte, dançando livremente entre homens confinados no pátio, incomodados com a sua presença. De modo geral, imagens que nunca foram concebidas para se tornarem arte se juntam a outras, consagradas enquanto tais desde o princípio, via distorção imagética e sonora. As cenas se tingem, de novo e de novo, visando se distanciar por completo do referente.

Em consequência, o imaginário da radiação contamina e fagocita o real, até aniquilá-lo por completo. Alguns segmentos buscam uma forma de abstração total — vide as partículas de cores piscantes, deslizando sobre um fundo poluído que pode corresponder ao espaço sideral, a um material aquoso de experimento científico em laboratório, ou a nenhuma dessas coisas. O Dente do Dragão não apela ao conhecimento dos fatos, nem à explicação didática do episódio histórico, preferindo se voltar a sensações inexplicáveis, possíveis apenas através da conjunção inédita de sons e imagens de origens distintas. Na verdade, este “filme de montagem” oferece um gesto de afronta em sua própria constituição: ele rompe com propósitos de intencionalidade clara, aumentando sons perturbadores aos ouvidos ou multiplicando imagens agressivas aos olhos. A repetição, instrumento fundamental da narrativa, serve a refletir sobre a dilatação do tempo e os aspectos imutáveis ao longo da história, inclusive daqui a “300 anos”, conforme imagina o curta-metragem. O futurismo proposto pelo diretor se assemelha ao presente e ao passado: não há saída fácil de uma crise que minimizou seu impacto e apagou seus indícios, impossibilitando a realização do luto por parte das vítimas. Por isso, tantas ranhuras, dissociações, esgarçamentos e saturações representam o gesto rebelde e politicamente ativo para chamar atenção, através da violência, a um tema adormecido. O cinema se faz performance.

O resultado será hermético demais ao espectador médio, com quem o discurso não insiste em se comunicar. Há uma lucidez neste tipo de procedimento que seleciona seu espectador, evitando efetuar concessões de linguagem para ampliar o alcance do discurso. Parrode dialogará com poucos, ainda que de maneira profunda e incisiva: os projetos radicais são necessários para equilibrar o teor conciliatório das obras voltadas ao mercado. Após inúmeros documentários que buscam explicar o Césio-137, o filme se propõe a senti-lo, a recordá-lo em evocações. Assim, tão linear quanto fragmentado, resulta numa proposta que poderia ser mais curta, ou muitíssimo mais longa, visto que a ruptura de formas conhecidas lhe permite ter o formato que desejar. Após tantas imagens que piscam e ruídos que atrapalham, a conclusão autoriza enfim um trecho praticamente sem intervenções, como se fosse dado ao espectador o direito de respirar e refletir acerca do banquete de estímulos. A montagem possui uma noção impecável de ritmo interno e, neste momento, reafirma a vontade de comunicação, ainda que com um público restrito — o filme não despreza o espectador, nem se coloca num plano arrogante, acima dele. O cinema do período mudo se une ao audiovisual dos anos 2000, e ao jornalismo de 1980, para compor uma estrutura totalizante, capaz de borrar os países e épocas, retirando o Césio de seu ano e sua cidade para melhor compreendê-lo enquanto acontecimento distanciado. Por trás de tamanho espetáculo de formas, luzes e cores, há uma proposta fértil de reflexão pragmática sobre o real.

Filme visto online no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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