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Sinopse

O lendário bailarino russo Rudolf Nureyev, conhecido por quebrar grandes barreiras entre o balé clássico e o moderno, ajudou a transformar o papel do homem na dança.

Crítica

Diretor bissexto – este é o seu terceiro longa-metragem como realizador – o também ator Ralph Fiennes confessou em entrevistas ter enfrentado dificuldades para levantar o orçamento necessário para tirar O Corvo Branco do papel. Tanto é que revela ter encontrado os investidores dispostos a bancar o projeto apenas quando anunciou que também participaria do elenco, algo que não estava interessado inicialmente. Pois se seu nome pode ou não atrair uma maior audiência, é difícil afirmar. No entanto, é possível, sim, perceber o quanto o filme perde não pela sua presença discreta em cena, mas pela visão covarde que demonstra na condução do projeto. Ao assumir uma postura absolutamente conformada e apática enquanto cineasta, entrega um filme que desperdiça uma oportunidade atrás da outra, ao mesmo tempo em que se mostra desinteressado em aprofundar os pontos que, supostamente, seriam de maior relevância. Um desperdício que, por vezes, chega até mesmo a ser perigoso.

Isso se dá particularmente na falta de pulso do responsável em construir uma história atenta aos fatos ao qual ela alega se basear. Como anuncia logo nos letreiros iniciais, “corvo branco” é uma gíria usada na Rússia para designar aquelas pessoas que fogem do padrão, que não se encaixam no que os outros esperam delas, que buscam novos conceitos e não se acomodam com o que lhes é pré-determinado – exatamente o que o filme não é, aliás. Mas enfim, é assim que é chamado Rudolf Nureyev, aqui interpretado pelo estreante Oleg Ivenko. Fica evidente desde a primeira entrada em cena do rapaz que ele foi escolhido mais pelo seu talento na dança do que pelo potencial de interpretação. Tanto é que, por mais de duas horas, ele irá alternar entre duas expressões: o obstinado e, bem... o rebelde, talvez?

Na tentativa de mostrar que “olha, estou fazendo um filme sobre o grande Nureyev”, Fiennes orienta o seu protagonista a ser ‘o grande Nureyev’ desde a primeira aparição em cena, ainda que no longa ele tenha apenas 17 anos e estava recém chegando em Leningrado para entrar na Academia de Dança. E não é só ele: todos os demais personagens o veem com reverência e uma atenção diferenciada, um comportamento que em nenhum momento se justifica, além do óbvio “bom, estamos diante do grande Nureyev”. Só um porém: naquela época ele ainda não era essa pessoa. Era apenas um rapaz do interior querendo, sim, ser alguém na vida, mas ainda sem os meios para tanto, além de uma habilidade em estado bruto, que precisaria ser muito trabalhada até chegar à destreza que conquistou multidões no auge da sua fama.

O roteiro de David Hare (indicado ao Oscar por As Horas, 2002, e por O Leitor, 2008) não é problemático apenas nessa abordagem. Nureyev é apontado como uma figura fora dos padrões desde o começo. Criticado por colegas e professores, nas seleções era deixado de fora, e aparentava estar constantemente inconformado. Onde estava, então, o talento que o fez ser apontado como um dos maiores nomes do balé contemporâneo? O filme não mostra. Mais do que o corvo branco, tentam vendê-lo como um patinho feio que, de uma hora para outra, simplesmente se transforma em um cisne belo e envolvente. Dividida em três ambientações temporais distintas – a infância, que serve para mostrar suas origens humildes, a adolescência, quando começou a se dedicar à dança profissionalmente, e já adulto, quando participa de uma turnê da companhia por Paris – o filme falha também ao desenhar as motivações existentes por trás de outro feito que ficaria marcado para sempre na biografia do dançarino.

Nureyev é conhecido também por ter sido o primeiro artista russo a pedir asilo no Ocidente. Na vida real, o ocorrido se deu pela relação que teve com um jovem alemão, quando esse estava na Rússia em um intercâmbio. Tudo indica, portanto, que teria saído do seu país natal já com as intenções de abandonar o regime, tanto para viver seu amor como também para explorar ao máximo sua arte. Porém, quando finalmente consegue a liberdade, o Muro de Berlim é erguido e o amante acabou preso na Alemanha Oriental, e os dois nunca mais se viram. Uma história de amor e tanto, como se percebe. Hare e Fiennes talvez a tenham considerado “gay demais”, ou algo do gênero, pois a transformaram por completo, praticamente eliminando o namorado, que mal chega a aparecer em uma cena, e inserindo uma relação heterossexual com uma mulher mais velha, além de insinuar um romance com uma garota francesa. Tais distorções não apenas acabam com qualquer boa intenção do projeto, mas também minam o que restava de credibilidade ao conjunto. Assim, O Corvo Branco termina por naufragar irremediavelmente diante de uma figura que sob hipótese alguma merecia ter sido tratada com tamanho desrespeito.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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