
O Agente Secreto
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O Agente Secreto
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2025
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Brasil / França / Alemanha / Países Baixos
Crítica
Leitores
Sinopse
O Agente Secreto se passa no ano de 1977. Marcelo é um cientista e pesquisador que precisa fugir de um passado violento e misterioso. Ao chegar na capital pernambucana em plena semana do Carnaval, percebe que atraiu para si o caos que insiste em lhe perseguir. Para piorar a situação, descobre que está jurado de morte. Inesperadamente, a cidade que acreditou que o acolheria ficou longe de ser um refúgio. Crime/Drama/Thriller.
Crítica
Coerência. Essa é uma percepção que se estende não apenas por todo o cinema de Kleber Mendonça Filho, mas também por seus posicionamentos públicos, enquanto artista e cidadão brasileiro. Sua obra reflete muito do que ele comenta e declara em entrevistas, encontros e mesmo em suas redes sociais. O Agente Secreto, sexto longa-metragem de sua filmografia, é resultado desse modo de ver as coisas. É, também, o seu trabalho mais apurado e, curiosamente, também o mais ousado até o momento. Ousadia essa que se verifica não apenas nas escolhas narrativas, mas no uso das câmeras, na combinação de atores do elenco, nas diferentes camadas de leitura que se permite, na diversidade da trilha sonora e até mesmo na opção por um título tão hermético, quanto falsamente simplista, possibilitando diferentes interpretações, que vão da mais óbvia ao profundo desdobrar de significados. Distante de obras corais, como O Som ao Redor (2012) ou Bacurau (2019), e com um protagonista ainda mais sólido do que a Clara de Aquarius (2016), o cineasta convida o espectador a seguir os passos de um homem em rota de fuga, não pelo que fez ou por algum plano futuro, mas pelo que acredita e pela pessoa que é. O Marcelo, ou Armando, de Wagner Moura, é um pouco de cada cidadão de um país em contradição. Seja no final dos anos 1970, seja nessa primeira metade do século XXI.
Logo na cena de abertura de O Agente Secreto, Armando chega dirigindo seu fusca amarelo em um posto de beira de estrada, no interior de um Brasil como sempre esquecido. O lugar parece estar abandonado, e o único corpo que vê é de um morto coberto por folhas de jornal a poucos metros das bombas de gasolina. Pensa não ter ali mais ninguém, mas ao ligar novamente o carro, um atendente esbaforido aparece. Uma briga alguns dias antes gerou o óbito, e a polícia até aquele momento ainda não havia aparecido. “Carnaval, você sabe como é, ninguém se importa”. Mas assim que o tanque está cheio, um carro oficial surge. Não para investigar a morte, no entanto. Estão atrás do motorista. Aquele que pedem para sair do veículo, e tentam de todo modo incriminá-lo com alguma irregularidade. O extintor de incêndio não estaria com o prazo de validade vencido? O estepe está em boas condições de uso? Há drogas escondidas no carro? Nada disso. Estão seguindo uma denúncia. Quem, então, está atrás daquele homem? O que ele teria feito de errado? E, afinal: quem ele é? De onde vem? Para onde vai? O filme nem começou direito, e o espectador está carregado de perguntas. Outras tantas irão se acumular no desenrolar dos acontecimentos. As respostas, por outro lado, serão escassas, entregues aos poucos, e nem sempre por completo. Há uma narrativa em desenvolvimento, e muito dela só será completada pela referências ofertadas por quem a assiste. Um processo compartilhado, único e enriquecedor.
Armando é um personagem complexo. Para começo de conversa, esse nem é o nome pelo qual é apresentado. Quem o acompanha o conhece primeiro como Marcelo, que depois se descobrirá ser um pseudônimo, um disfarce. Ele não é um herói. Pelo contrário, está mais para um anti-herói. No ano de 1977, quando estes eventos se passam, a ditadura militar brasileira já havia passado do seu auge, mas também se encontrava ainda longe da democratização. Wagner Moura vai construindo essa figura sem pressa, carregando muito no olhar daquilo que não precisará expressar por palavras – por mais que essas não lhe faltem quando solicitadas. Sem arroubos e discursos inflamados, tem em mãos um pesquisador, um intelectual, um homem não de armas, mas de ideias. Que não se curva, mas também não quer convencer ninguém. Por isso, acaba pagando um preço alto demais. A esposa lhe é tirada, o emprego que mantinha numa universidade pública não mais lhe pertence, há apenas o filho pequeno para proteger – função que agora está sob responsabilidade dos avós maternos. Armando é fruto da violência história dessa nação. Sua mãe foi estuprada pelo filho do empregador. A criança foi tirada dela, e criada sem contato com a mulher que o gerou. Hoje, tenta remediar sua origem. Mas curativos tardios nem sempre curam feridas há tanto expostas.
Sem seu conhecimento, sua vida é colocada em risco. Jurado de morte, demora a perceber que há matadores em seu encalço. Escondido em uma comunidade de refugiados, ouve as sábias palavras da Dona Sebastiana (Tânia Maria, roubando a cena a cada aparição), que podem não fazer diferença de forma imediata, mas servem para mudar a forma de ver o mundo. Empresários corruptos acusam nos outros aquilo que eles próprios praticam. Quando alguém levanta a voz para fazer valer sua honra, faz de si mesmo um alvo. Eis o que acontece com Armando. De nada lhe adianta a experiência estrangeira, o abrigo de quem, supostamente, tem mais condições, a orientação dos infiltrados que servem para apaziguar os ânimos, por mais que não cheguem a afetar o quadro maior. Num grupo repleto de nomes notáveis, quem mais se destaca, além de um intenso Moura, é a excelência demonstrada por Mendonça Filho. Seu filme transita do thriller político ao exercício de gênero, do romance policial à comédia de costumes, e um estilo se encaixa no outro sem tropeços ou ruídos. Da perna engolida por um tubarão ao delegado que faz sua própria lei, do matador de aluguel à dupla de criminosos que sabe bem o preço dos seus atos, do projecionista cansado de quem vai ao cinema para cometer atos libidinosos e não presta atenção no filme ao feirante de faz dessa atividade um disfarce para um objetivo maior, ninguém é apenas aquilo que parece ser, revelando uma profundidade complexa e merecedora da atenção que exige.
Nem tudo é perfeito, fato, e se há alguns pontos frágeis em O Agente Secreto, esses também não chegam a prejudicar a experiência como um todo. Por mais que os eventos mostrados ao longo do filme se passem em sua maioria quase cinco décadas atrás, a inserção de sequências contemporâneas com jovens pesquisadoras analisando as fitas deixadas pelos envolvidos nesse caso em particular gera um desconforto pela não necessidade das explicações ofertadas. É certo que essas cenas possuem uma função, e essa está ligada ao desfecho da história. Mesmo assim, em um conjunto que persegue na maior parte do tempo o mote que afirma que “menos é mais”, tais facilitadores soam alienígenas ao todo. Pois a força do que é visto até esses momentos – a destreza do condutor da trama, o mergulho de um protagonista consciente dos seus acertos e dos riscos aos quais está expostos – supera tais contradições. E eis que se chega ao maior dos questionamentos: quem seria, de fato, o agente provocador de tantas mudanças, performances, disputas e embates? Quem estaria agindo nas sombras, sorrindo para muitos ao mesmo tempo que mata e cala os que a ele se mostram oposição? Há vários planos no decorrer do filme que enfocam os generais no poder. A resposta, portanto, está dada. Um perigo que se fazia presente ontem, ameaça um retorno hoje e do qual se deve evitar amanhã. Tanto memória, quanto lembrete de um risco que pode, e deve, ser alertado.
Filme visto durante o 58º Festival de Brasília, em setembro de 2025
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