Crítica
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Sinopse
Em Mais Um Dia, Zona Norte, momentos de exceção permitem que trabalhadores moradores da periferia do Rio de Janeiro transformem as suas rotinas. Selecionado para o 8ª Cine Jardim (2024).
Crítica
O Rio de Janeiro dos cartões postais é o da Zona Sul, de Copacabana, Ipanema, Leblon e até mesmo do lado de lá da Barra. A cidade, no entanto, é muito maior, obviamente. Esse olhar nostálgico e de contornos suaves cai bem para turistas e visitantes, aposentados ou uma juventude abastada e despreocupada. Os trabalhadores, aqueles que ralam de sol a sol em busca por uma oportunidade para pagar os boletos e seguir na luta, pouco tempo tem para desfrutar dessas belezas naturais de cabeça leve e desimpedida. A esses, o esforço é constante e a batalha nunca está ganha, oferecendo apenas intervalos de descanso aqui e ali antes que um novo leão adentre a arena. Mais um dia, Zona Norte, de Allan Ribeiro, é um filme que se propõe a investigar um momento não de trabalho, nem mesmo de vitórias coletivas, mas formado por instantes de ganho pessoal, de luz em meio a um caos constante. Parece pouco, ainda mais em tempos de tudo ou nada, de ame ou odeie, mas se mostra suficiente para confirmar o valor das pequenas conquistas, do pouco que, para quem o faz por merecer, acaba por fazer a diferença. Assim como esse longa de charme insuspeito, que envolve sem pressa nem afobação.
Mais de meio século atrás, o mestre Nelson Pereira dos Santos partiu do universo do samba para expor as injustiças de uma cidade ainda em formação no clássico Rio Zona Norte (1957). Décadas se passaram, mas Ribeiro permanece reconhecendo a importância da música para esse contexto, porém ampliando seu escopo de análise. Assim, as escolas de samba se mostram um ambiente de segurança e conforto, mas não mais o único. Há ainda a realidade LGBTQIAPN+, representada por meio de um transformista que sai de uma aposentadoria autoimposta para uma última (?) apresentação, com todas as plumas e paetês, perucas e purpurinas a que têm direito. Os frequentadores dos bailes charme também vêm ocupando um espaço de cada vez maior destaque, assim como tem se multiplicado o acesso – e o reconhecimento – dos artistas de rua, agora vistos como comediantes dignos de plateias numerosas nos conhecidos stand up. Lugares que podem ser encontrados por todo o Brasil, em maior ou menor grau, mas que na Zona Norte do Rio de Janeiro se mostram tão indeléveis quanto o calor carioca.
Allan Ribeiro não é estranho a nenhum desses ambientes. Nascido ele próprio na região, por muitos desses círculos já frequentou, e em outros tantos tangenciou, entende seus funcionamentos e bem conhece outros tantos que de lá fazem parte. Essa proximidade, se não o faz parte do cenário ao qual estende seu olhar, ao menos lhe permite a familiaridade necessária para transitar por estes caminhos sem tropeços ou desvios. Alguns poderiam apontar essa falta de distanciamento como um empecilho a ser superado, pois o exercício resultante deste olhar poderia se mostrar contaminado por uma emotividade que nem sempre se mostraria à altura do retrato a ser percorrido. Não é o que acontece, felizmente, com Mais Um Dia, Zona Norte. Cada um dos tipos em cena faz, sim, parte de um todo, o mesmo do realizador, mas não se bastam apenas nesse ponto em comum. São universos particulares, figuras autônomas e satisfeitas em suas individualidades. Por isso mesmo, de fácil identificação, pois não genéricas, ganhando contornos suficientes para gerar um compartilhamento maior, independente de quem os observe.
Como invariavelmente acaba acontecendo em filmes-corais – e é importante a compreensão de que este é, sim, uma soma de várias linhas narrativas – nem todos os caminhos escolhidos se mostram no mesmo nível dos demais. São, ao todo, quatro personagens principais: dois homens e duas mulheres. Elas se mostram como lados distintos de uma mesma moeda: a jovem com um mundo pela frente e a mulher madura que muito já conquistou, e portanto entende o direito – e a necessidade – que tem em se permitir certos prazeres. As duas encontraram na dança uma válvula de escape, no ambiente da periferia, vindo de longe ou de muito perto, e em comunidade conseguem se realizar. Seja do esforço árduo em céu aberto ou em transições burocráticas, é quando estão na pista que mostram suas verdadeiras faces. Entre eles, porém, a ambição talvez seja maior. Um esteve sob os holofotes há muito tempo, e tem dúvidas se ainda sabe como se encaixar numa realidade que agora não lhe é mais tão inédita, ou mesmo de fácil reconhecimento. O outro, no entanto, é hábil o suficiente para eclipsar os demais. Vestido com um figurino de super-herói, enfrenta os olhares desconfiados e curiosos de peito aberto. Ganha a vida com um microfone na mão, mas se no dia a dia as pessoas dele desviam, é à noite que espera que os olhares a ele se dirijam. No palco, no cinema e na vida.
Não se pretende mudar o mundo e nem propor discussões por demais subliminares com Mais Um Dia, Zona Norte. É justamente essa delicadeza ao colocar suas questões, porém, que faz desta uma obra tão contundente em seu discurso, pois longe de ser didática, transmite seu olhar por meio de uma empatia crescente, que permanece com a audiência e vai se transformando quanto mais com ela segue motivado pela reflexão. Trata-se de um aconchego, uma busca pelo brilho que transforma e conquista, ainda que faça esse trajeto de modo absolutamente simples, quase banal, sem reviravoltas ou acidentes de percurso. A menina é plateia do artista, a senhora pega o mesmo transporte público do comediante, o velho colecionador entrega sua arte à garota que está atrás de algo que lhe acenda, e assim eles vão se cruzando e, principalmente, multiplicando. São apenas quatro, mas de fato são dezenas, milhares e inúmeros, tanto à frente como atrás das câmeras. Há carinho, sim. Mas, acima de tudo, muito respeito. É esse pouco, afinal, que preenche o todo de cada um.
Filme visto durante o 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em dezembro de 2023
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