Crítica
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Sinopse
Em Mais Pesado é o Céu, de Petrus Cariry, Teresa conhece Antônio depois de acolher uma criança abandonada. Ligados pelas memórias de uma cidade submersa pela represa que inundou sonhos e histórias, eles caem na estrada e começam uma jornada.
Crítica
“Vivemos submersos no fundo de um oceano de ar”. A frase, atribuída ao cientista italiano Evangelista Torricelli (1608-1647), serve para abrir a narrativa de Mais Pesado é o Céu, sétimo longa dirigido por Petrus Cariry, um dos mais interessantes realizadores do cinema cearense – e brasileiro – contemporâneo. Em cena, duas pessoas perdidas dos outros e de si mesmas, buscando desesperadamente se encontrar – consigo, com alguém, com o universo. Um está indo sabe-se lá para onde, a outra vem de lugar nenhum, e no meio, entre eles, um bebê recém-nascido, uma criança com uma vida inteira pela frente, vida essa que poderia ter acabado antes mesmo de começar, mas que resiste, e agora, nos braços dos dois, recebe, enfim, uma segunda chance. Esse amor que transborda entre eles é duro, é difícil e sofrido, mas é também uma armadura, que os faz forte e permite que sigam em frente. Eis aqui um filme sem início e nem mesmo fim, é um sentimento cuja origem vem de antes e permanecerá por muito depois. Ser colocado no meio de tudo isso com habilidade e cuidado é fruto do talento de um diretor que sabe o que tem em mãos, aliado a uma dupla de atores em alguns dos seus melhores momentos. Um encontro raro, e por isso mesmo, precioso.
Antônio ouviu falar de um amigo que, supostamente, estaria se dando bem “no negócio dos caranguejos” no litoral cearense. Fazendo o caminho inverso de tantos como ele, deixa São Paulo e vai, de carona em carona, em busca de uma nova oportunidade do outro lado do país. Teresa, por sua vez, provavelmente está tão cansada da guerra quanto aquela criada por Jorge Amado, mas sabe também que não pode desistir. Por isso segue andando, um passo após o outro, rumo a uma vida que nem mesmo ela entende como deveria ser. Está na contramão dele, quer deixar o interior para encontrar uma nova sorte na capital – Fortaleza, no caso. No meio do nada, ambos acabam cruzando um pelo outro, mas não sem antes darem guarda ao menino, que vem até eles num barco abandonado na beira do rio. A imagem é bíblica, e repleta de significados. É um presente que chega, mas também uma responsabilidade que podem assumir ou não. Ao darem abrigo àquele pequeno ser, estão também abraçando um mundo inteiro.
Por muito tempo o espectador irá se perguntar: no meio de tanta miséria, por qual motivo decidem responder por mais uma alma? Mas é também por isso: se nada têm, dividir o pouco que conseguem parece ser o menor dos problemas. E, ao mesmo tempo, está na criança um motivo para se manter em pé, mirando o horizonte e buscando por aquilo que nem mesmo eles sabem ao certo. Quando encontram pouso, a oferta que seria tão facilmente aceita já não agrada tanto. Na busca por um emprego, não conseguirá lidar com qualquer humilhação. Os papéis, ao menos como tradicionalmente são desenhados, irão se inverter: ele ficará em casa, cuidando do pequeno, enquanto ela parte para a rua. Ninguém ali é bobo, ambos sabem bem o que precisa ser feito. A estrada é longa, o movimento é intenso, sempre irá parar alguém em busca de um prazer momentâneo. A decisão é o que deverá pesar mais: uma moral pessoal, ou a fome, o desabrigo, a necessidade de sobrevivência. Mas, assim como tudo tem seu preço, há também um limite para o que uma pessoa pode aguentar. Seja provocada por aqueles ao seu redor, ou mesmo por um peso que o esmaga de cima para baixo.
O principal nome do elenco de Mais Pesado é o Céu é o de Matheus Nachtergaele, que brilha com a mesma intensidade de uma estrela prestes a se apagar. A energia está com ele, mas a um passo de ir embora. É nesse resquício de luminosidade a que ele se agarra, tanto para si, como também de exemplo para essa companheira de acaso. Porém, a revelação é Ana Luiza Rios. Vista em filmes como O Clube dos Canibais (2018) e A Filha do Palhaço (2022), invariavelmente como coadjuvante, dessa vez entra em cena sem pedir licenças, dominando as atenções mesmo tendo como parceiro um veterano dos mais versáteis. A dobradinha que ambos estabelecem é rica em nuances e camadas, e por mais que alguns desfechos sejam esperados, os mesmos se dão nunca de uma forma óbvia ou fácil de ser antecipada. Ela é tão mãe quanto ele, mas é também insatisfação e fúria, resignação e luta. O sentimento de amargura domina seus olhos, mas também se mostra represado no limiar de cada gesto, nas palavras não ditas, nas intenções nunca realizadas. Petrus Cariry conduz esse balé entre artistas em plena segurança dos seus potenciais, resultando em algo acima dos seus talentos individuais.
Há muitos caminhos possíveis para os protagonistas. Uma vida de conveniências chega até a ser cogitada por um deles, como “o normal pelo qual todos esperam”. Há portas que lhes permitem também desistir, simplesmente abandonar as intenções que neles criaram raízes e, sozinhos, curtir suas próprias desgraças. Mas o maior protesto que podem fazer é ir em frente, sem olhar para onde vieram, mirando apenas o próximo passo. E se no caminho algo se perder, isso faz parte do o destino lhes reserva. Resistir é também enfrentar, não se permitir cair, nem que o preço por isso seja pago em pele, em sangue, em corpo e em espírito. Mais Pesado é o Céu é sobre um Brasil que se recusa a morrer, a se deixar levar, mas que não se cansa de sofrer, da dor que o abate, mas não lhe derruba. E se no processo não mais reconhecer a si mesmo, estará nesse grito a revolta para mais um dia sob um sol que tanto dá, quanto retira. E assim persegue um momento de descanso, de respiro, algo que nunca chega, e ainda que ciente disso, não deixará de por ele procurar.
Filme visto em agosto de 2023, durante o 51º Festival de Cinema de Gramado
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