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Sinopse

Apaixonado por uma florista cega, amigo etílico de um ricaço, o Vagabundo vai fazer de tudo para patrocinar a cura de sua mulher amada.

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Metade pantomima, metade romance. Assim é Luzes da Cidade, uma das obras mais famosas do grande Charles Chaplin. Resistente quanto aos filmes falados, ele faz desta uma encantadora peça de resistência, por meio da qual reafirma as qualidades que o tornaram, talvez, o maior artista que o cinema já teve. Depois de ser descoberto dormindo numa estátua, em meio à sua inauguração – imagem que ressalta o desamparo do vagabundo de chapéu coco, bengala e sapatos largos –, e de ridicularizar as autoridades, bem como a solenidade do momento com sua bem-vinda inocência, ele encontra fortuitamente uma florista cega (Virginia Cherrill) que o confunde com um ricaço. O bater da porta do carro é suficiente, uma solução tão simples quanto hábil. O olhar do protagonista se transforma no instante da constatação da deficiência da bela jovem. É como se ele se apaixonasse não só pelo rosto ou pela presença dela, mas por sua vulnerabilidade, ou seja, por aquilo que, em dimensões diferentes, os une.

Ao invés de permanecer no terreno do romance, Chaplin volta à pantomima nos instantes em que interage com o excêntrico milionário (Harry Myers) de quem salva a vida. Maltrapilho, ele é convidado pelo homem ainda bêbado a desfrutar os prazeres de sua mansão e das festas regadas a muita bebida e comida, situações que servem para Carlitos desfilar o estilo singular e contumaz de suas gags, como as que marcam as interações com os afortunados num salão de baile. Luzes da Cidade é caracterizado, também, pelo desenho recorrente de um abismo social perverso. Enquanto o personagem de Myres é apenas amigo do vagabundo quando ébrio, ostensivamente provendo coisas como forma de mitigar a própria tristeza por ter perdido a esposa, o pobretão faz das tripas coração para ajudar a amada em situação tão precária quanto a dele. A drástica mudança de comportamento do endinheirado deflagra, de maneira ora melancólica, ora cômica, a alienação burguesa diante dos que padecem à margem.

Luzes da Cidade possui cenas/sequências icônicas dentro da filmografia de Charles Chaplin. Por exemplo, vemos o vagabundo arrumar um emprego regular para auxiliar a florista. Não à toa, sua função se restringe a percorrer as ruas recolhendo o excremento dos animais, geralmente propriedades de gente com uma condição social mais privilegiada. Outro segmento que permanece vívido na memória é o boxe. A coreografia, com os lutadores praticamente dançando no ringue, entre a troca de socos que faz ambos cambalearem, é uma dessas passagens que eternizaram o filme, dada a inteligência com que consegue fazer de uma ocorrência dramática, já que Carlitos perdeu na última hora seu colega de arranjo, um genuíno idílio de graça. Embora seja não falado, o longa-metragem se vale pontual e engenhosamente de alguns sons, como quando o protagonista engole um apito durante a celebração que o amigo ocasional dá em sua homenagem, chegando ao ponto de atrair uma matilha.

A alternância de pantomima e romance segue traçando a rota deste melodrama, paradoxalmente, bem-humorado e com inclinação à crítica social. A aproximação de Carlitos e da florista que acredita ser ele um benfeitor cheio de posses ganha contornos mais emocionantes quando as coisas se encaminham ao ápice da abnegação. Ao custear a operação da amada, o vagabundo sabe ser necessário afastar-se. Em Luzes da Cidade, Chaplin faz uma reflexão sobre as aparências, partindo de um envolvimento às escuras, grande parte mediado por ações, fala e os casuais toques, culminando na cena derradeira, uma das mais bonitas que o cinema já foi capaz de apresentar. Mais esfarrapado, o homem que simboliza a luta constante contra os ditames de uma sociedade fundada na distorção de valores se vê diante daquela a quem ajudou prosperar. A singela troca de olhares basta, pois relega a palavra à mera coadjuvância, para eternizar o encerramento convidativo às lágrimas desta obra-prima.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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