Love Lies Bleeding: O Amor Sangra

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Sinopse

Uma história de amor ambientada nos anos 1980. Lou é uma tímida gerente de academia e Jackie uma ambiciosa fisiculturista. Mas, um ato de fúria impensado as coloca juntas numa rota de sangue e vingança.

Crítica

Muitos filmes e séries recentes recorreram à estética dos anos 1980 como impulso nostálgico. Neons, sintetizadores, cores berrantes, cortes de cabelo extravagantes, figurinos exagerados e comportamentos próprios à época estão na moda, ditando o que podemos considerar uma tendência saudosista. O novo exemplar dessa abordagem é Love Lies Bleeding: O Amor Sangra, filme que tem como protagonista Lou (Kristen Stewart), atendente queer de uma academia de musculação. Aliás, a cineasta Rose Glass apresenta esse cenário enfatizando os seus traços oitentistas, vide os homens de peitos peludos e as mulheres vestindo roupas justas e cintilantes, entre outras coisas. A proximidade da câmera com esses corpos suados e hiperestilizados em planos-detalhe anuncia a abordagem fetichista, cujo interesse é observar pessoas em busca de algo. Outro traço comum é a construção de imagens e/ou situações simbólicas, como o fato de Lou começar a trama tentando desentupir uma privada que tende a enguiçar novamente. Trata-se de uma metáfora sobre a sua vida entalada de problemas persistentes, obstruída por dejetos do passado que inconvenientemente tendem a vir à tona perturbando a pouca paz conquistada. A direção de Rose é estilosa, se orgulha do artifício e tem um quê de conto de fadas às avessas. Os signos dos EUA bélico e cultor da violência são utilizados como marcas de um pertencimento.

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Mais ou menos como fizera David Lynch no febril Coração Selvagem (1991), Rose Glass insere um relacionamento fogoso nesse mundo hiperbólico. No caso, o envolvimento é de Lou com Jackie (Katy O’Brian), a forasteira de passagem pela cidade enquanto aguarda o começo da competição de fisiculturismo em Las Vegas. O corpo sarado de Jackie hipnotiza Lou e a cineasta transfere à câmera (representante do nosso olhar) esse encantamento sugestivo de uma paixão à primeira vista. Conforme as cartas vão sendo colocadas na mesa em Love Lies Bleeding: O Amor Sangra, percebemos que as amantes possuem coisas em comum, por mais que pareçam pessoas completamente diferentes. Por exemplo, ambas têm questões físicas a resolver. Lou passa o longa-metragem lutando contra o vício banal em cigarros, inclusive recorrendo àqueles programas de incentivo gravados em fitas cassete. O tabaco é uma espécie de muleta que a faz lidar melhor com certas angústias entranhadas. Já Jackie tonifica o corpo para fazer dele uma fortaleza, estrutura sólida o suficiente para suportar algo que nunca é esmiuçado na história. Então, assim como os personagens de Nicolas Cage e Laura Dern no longa de Lynch, Lou e Jackie experimentam um vínculo intenso que as conecta no mundo hostil. Mas à medida que o enredo avança, somos mergulhados de maneira contundente na sordidez da disfuncionalidade familiar.

Love Lies Bleeding: O Amor Sangra se concentra durante um bom tempo no relacionamento de Lou e Jackie, sempre com destaque à carnalidade desse romance em brasa. Rose Glass reforça a observação de Jackie como alguém em processo de crescimento muscular, sobretudo depois da administração de anabolizantes que a ajudam a chegar numa forma ideal. Gradativamente, essa personagem perde os contornos lógicos e se transforma numa montanha de músculos reativa, a serviço de impulsos primários, enquanto Lou vai tendo revelada parte significativa do seu passado. Da família, ela é a única que não aceita de bom grado os vínculos amorosos atrelados a manifestações de violência. Seu pai, interpretado por Ed Harris, é o típico gângster que coloca a polícia na folha de pagamento a fim de se tornar no mandachuva local. Um patriarca que não enxerga com tanto espanto e indignação o fato de sua filha mais velha, Beth (Jena Malone), ser sistematicamente espancada pelo marido (interpretado por Dave Franco). Apernas Lou pensa em fazer algo contra o cunhado impune, dividindo com a cada vez mais anabolizada Jackie seus pensamentos inconfessáveis. Essa inconformidade com a violência atrelada aos vínculos afetivos mostra que Lou está disposta a romper um círculo vicioso que, por exemplo, sequestrou sua irmã e a condicionou a crer que os elos sentimentais precisam carregar consigo a aceitação das dores.

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Love Lies Bleeding: O Amor Sangra derrapa um pouco ao moldar Jackie como uma potência física quase incontrolável à medida que escancara a disfuncionalidade familiar de Lou. Rose Glass puxa toda a atenção para a jovem que tenta desesperadamente se desvincular da influência paterna – sobretudo por intuir que se assemelha mais do que gostaria a esse pai perverso. A cineasta transforma a forasteira musculosa numa manifestação da força bruta – até chegar à ótima e inesperada cena em que toma liberdades poéticas para desenhar uma metáfora com gigantes garantindo heroicamente a vitória dos mocinhos. Ao longo da trama, a realizadora sugere timidamente essa interlocução figurada entre ordinário e extraordinário, ainda que, no fim das contas, o excepcional seja somente a liberdade poética utilizada para dizer algo indiretamente. Lou confrontando o pai gângster, tentando se emancipar da hereditariedade maldita e sentindo a necessidade de proteger as pessoas queridas, mesmo com a utilização extrema de violência, embaça a trajetória pessoal de Jackie. Ela é calculadamente transformada na besta-fera disposta a tudo para proteger e alcançar objetivos grandiosos. Rose Glass conta essa história alguns tons acima do realismo, anabolizando o acerto de contas com a família disfuncional ao administrar nesses corpos intensos injeções de desejo e agressividade, os adornando com ícones oitentistas.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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