Crítica


5

Leitores


8 votos 6.6

Onde Assistir

Sinopse

A família Primm se muda para Nova Iorque, o que não parece nada bom para o pequeno Josh. No entanto, a sua perspectiva da cidade grande muda radicalmente quando ele se depara com um crocodilo cantor em seu sótão.  

Crítica

O mundo era bem diferente quando o escritor Bernard Waber apresentou o crocodilo Lilo aos leitores em The House on East 88th Street. O ano era 1962 e os Estados Unidos passavam por um período de contestações sociais. Por sua vez, as crianças estavam longe de ser encaradas como público prioritário pela Hollywood prestes a ser chacoalhada por uma onda de contracultura e reivindicações de grupos minorizados. De lá para cá, várias gerações se depararam com as histórias do crocodilo bípede que mora com uma família nova-iorquina e tem altas aventuras em tom lúdico para apresentar lições aos pequenos. É curioso, porém, que o filme Lilo, Lilo Crocodilo chegue neste momento às telonas. As crianças da nossa contemporaneidade estão  mais acostumadas às narrativas aceleradas e hipercoloridas, com músicas-chiclete e uma quantidade infindável de produtos que fazem do licenciamento uma das razões de ser das obras. Já esse longa-metragem live-action (com inserções em CGI) dirigido por Josh Gordon e Will Speck parece adequado às gerações infantis anteriores, especificamente àquelas que não respondiam aos fenômenos da rapidez e descartabilidade da chamada Era Digital. Mais parece uma daquelas produções “feitas para toda a família”, abundantes nos anos 1980/90, do que algo realizado para ser bem-sucedido na atualidade ditada por fenômenos midiáticos.

Nesse sentido, Lilo, Lilo Crocodilo tem um tom mais próximo de Pedro Coelho (2018) – baseado no livro As Aventuras de Pedro Coelho, da renomada Beatrix Potter. Ambos os projetos têm origem em personagens criados em outro momento e para outra infância. A trama segue à risca os elementos principais da fábula moral, aquelas em que os personagens passam por um trajeto de altos e baixos a fim de aprender alguma coisa (e que terminam com a “moral da história”). Josh Primm (Winslow Fegley) é um menino introvertido recém-chegado à movimentada cidade de Nova Iorque na companhia do pai, o Sr. Primm (Scoot McNairy), e da madrasta, a Sra. Primm (Constance Wu). Sua atitude amedrontada diante dos sons incessantes da metrópole e os indícios de comportamento obsessivo serão esquecidos (como num passe de mágica, infelizmente) apenas quando ele encontrar Lilo (voz original de Shawn Mendes), o crocodilo que mora no andar superior do novo apartamento. Estamos diante de duas solidões obliteradas pela amizade improvável entre um menino e um réptil enorme que, com seu olhar gentil, quebra qualquer expectativa de estarmos diante de um predador feroz. À medida que Josh convive com o novo amigo, revirando latas de lixo e tendo aventuras madrugadas adentro com ele, a criança ganha confiança. A mensagem é clara: um amigo é a melhor coisa do mundo.

Ser pensado para entreter os pequenos não minimiza as fragilidades conceituais de Lilo, Lilo Crocodilo. O filme infelizmente mete os pés pelas mãos no quesito curva dramática/elaboração dos personagens. Josh se transforma milagrosamente em outra pessoa ao desfocar de seus problemas e ansiar pelo momento de reencontrar o improvável amigo. E a capacidade do crocodilo de transformar positivamente a vida das pessoas ao redor é confirmada assim que o Sr. e a Sra. Primm conhecem esse animal que se desloca sobre dois pés. Em prol da magia da bondade que modifica tudo, os realizadores deixam de lado as evidentes restrições maternas e paternas quanto ao hóspede incomum. Rapidamente, Lilo mostra aos dois que eles têm potencialidades reprimidas pelas demandas da vida adulta. Mas, como o roteiro assinado por Will Davies não dá muita importância para esse gradual desenvolvimento da boa vontade adulta com o carismático Lilo, os pais acabam se transformando em meras extensões do garoto, só que com maior liberdade de ir e vir. Para garantir a entrega da mensagem de incentivo dos laços humanos, Josh Gordon e Will Speck fazem vista grossa a qualquer coisa no caminho da definição de heróis e vilões. No fim das contas, o que importa à dupla é garantir que Lilo modifique a perspectiva carrancuda e nublada da nova família enquanto perde os próprios medos.

Pensando especificamente no elenco, o pequeno Winslow Fegley tem um bom desempenho na pele do menino que desabrocha na companhia do talentoso Lilo. Já os membros adultos do time não têm tanto espaço de manobra, vide Constance Wu que poderia sobressair se as angústias da maternidade de sua personagem não fossem apenas uma nota de rodapé sem densidade e, portanto, desprovida de relevância. Quem realmente se destaca nesse quesito é Javier Bardem como Hector, o artista boa praça que pretende expor Lilo ao mundo e torna-lo uma verdadeira atração do showbiz norte-americano. Ele deita e rola com um personagem abertamente caricatural (um latino excêntrico de bom coração), exibindo o talento de sempre assim que o roteiro superficial lhe dá alguma brecha para aprofundar temas como ambição, amizade, covardia e decepção. Hector é a figura solar que oscila entre a necessidade de ter alegria e a responsabilidade. Por um lado, representa outra lufada de renovação no cotidiano dos Primm, mas, por outro, sofre as consequências de sua irresponsabilidade. Lilo, Lilo Crocodilo perde alguns pontinhos valiosos por ser um musical em que os números não são lá muito inspirados, basicamente reprisando uma estética Disney com suas letras de cunho motivacional. Mesmo assim, é curioso ver uma iniciativa dessas, mais à moda antiga, nessa atualidade célere.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *