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Sinopse

Durante uma crise de insônia, a atriz Julia Katharine, uma mulher transexual, conta a história de sua vida através de um monólogo. A intimidade da personagem central é exposta através de relatos reais de resistência e autoaceitação.

Crítica

Julia Katharine é uma atriz transexual. Tem 40 anos e começou sua carreira tardiamente. Ao menos é o que ela pensa. O nome vem da admiração pela diva Katharine Hepburn, a quem atribui, também, seus passos na interpretação. Segundo uma entrevista que Julia leu, Hepburn nunca cursou uma escola de artes dramáticas ou algo do gênero. Aprendeu o ofício, portanto, trabalhando. A paixão pelo cinema fez com que a protagonista do documentário Lembro Mais dos Corvos, de Gustavo Vinagre, fugisse de várias tristezas, seja a repressão da infância à vida adulta ou os dias em que dormiu nas ruas do Japão.

Na verdade, se fala em documentário, mas a própria Julia já afirmou que há histórias ficcionais em seu relato diante da câmera. Por 80 minutos, o dispositivo está focado nela, em casa, no seu habitat natural. O tique de arrumar os cabelos a todo o instante. Os cigarros acesos quase um atrás do outro. A taça de vinho rosé que esvazia e enche ao ponto da protagonista precisar de um chá em meio às filmagens "para não ficar tonta". Vinagre, o diretor, centraliza o eixo da decupagem nessa mulher tão personagem quanto real. E chega a ser incrível sua força para, numa mesma frase, contar detalhes banais e chocantes sobre toda a sua trajetória.

Inclusive, é ainda mais interessante como o primeiro assunto abordado talvez seja o mais polêmico. Aos oito anos de idade, Julia, quando ainda não havia feito a transição, teve relacionamento com um homem bem mais velho, de 55 anos. A atriz sabe que sofreu abuso de um pedófilo, mas, ao mesmo tempo, não se sente vítima daquela situação ocorrida décadas atrás. Para ela, independentemente de entender a perversidade do sujeito, ele foi importante para algumas definições, especialmente as sexuais. É uma história que muitas pessoas, trans ou não, passam todos os dias – infelizmente. Crianças sexualizadas logo cedo e que não têm escapatória.

Julia entende, mas não se fixa nisso. Na longa conversa que o cineasta (inclusive, seu amigo) transforma em monólogo, vemos uma personalidade desabrochar. Katharine começa a contar detalhes mais escabrosos, escandalosos e até ridículos (em sua própria concepção), parando diversas vezes por vergonha. Chega, inclusive, a questionar o diretor se a intenção é deixá-la constrangida. Atuação ou verdade? É um jogo de cena que lembra o do filme de Eduardo Coutinho que tem essa expressão como título. Até que ponto a Julia real é essa que vemos na tela?

Não que importe muito, pois, verossímil ou não, seus relatos são como os de várias outras pessoas em dificuldade, especialmente as transexuais. Julia não nega que teve vontade de mudar o corpo quando bem mais nova, mas desistiu ao ver como o silicone industrial era inserido no organismo. Não conseguia ir pra escola após um evento traumatizante que envolvia um professor de matemática e colegas agressores. Logo, se tornou autodidata através do cinema e do trabalho em videolocadoras. Foi questionada diversas vezes por outras trans, por não ter feito a cirurgia. Teve um leve AVC após tomar hormônios. Enfrentou vários estágios de depressão. Acima de tudo, ainda que com um ar triste nos olhos, mantém um sorriso no rosto e uma sagacidade nas palavras, algo que apenas pessoas com um belo nível cultural conseguem fazer.

A crueza da câmera de Vinagre aumenta ainda mais essa sensação de intimidade com a protagonista, já que, o que vemos incessantemente é o apartamento JK, com a cama, o sofá e o varal com suas roupas. Além, é claro, de seu lovebird, o animal de estimação. Algo que remete diretamente ao título do filme e, metaforicamente, aos corvos que deixaram marcas em seu corpo e sua mente. Com uma vida pesada, mas cheia de esperança, Julia sonha em escrever e dirigir apenas comédias românticas para suprir a falta de relacionamentos amorosos ao longo da vida. Com tanta sensibilidade e bom humor que transparece, não é de duvidar que seu caminho atrás das telas será um sucesso. E assistir à Lembro Mais dos Corvos é apenas mais um passo para assinar embaixo dessa afirmação.

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é crítico de cinema, apresentador do Espaço Público Cinema exibido nas TVAL-RS e TVE e membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista e especialista em Cinema Expandido pela PUCRS.
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