Crítica


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Sinopse

Depois de ano de ausente, Krisha se reúne novamente com sua família nas férias. Ela percebe que diante dela está a oportunidade de conserta os erros do passado, cozinhar o peru para a família e provar para seus entes queridos que ela mudou para melhor. Porém, os delírios dela conduzem o feriado para uma experiência atordoante que ninguém vai esquecer.

Crítica

Quando, em certo dia de Ação de Graças, Krisha (Krisha Fairchild) retornou de tempos intranquilos, encontrou-se no meio de sua família metamorfoseada numa pária. Assim como o Gregor Samsa do clássico livro A Metamorfose, de Franz Kafka, que acorda transformado num inseto, a protagonista do filme escrito e dirigido por Trey Edward Shults que, por sua vez, é baseado no curta homônimo do mesmo realizador, se tornou indesejada. Apesar de recebida pelos familiares com sorrisos e cordialidade, não consegue evitar de causar repulsa pela forma assumida. Não é estranho, então, que Krisha adote pitadas de horror que remetem à atmosfera sombria, distorcida e solitária concebida pela escrita de Kafka.

Abrindo com um plano-sequência que força o espectador a acompanhar Krisha durante cada segundo do primeiro contato com a família, depois de anos afastada, Shults estabelece que, seja lá por quais motivos, existe ressentimento entre aquela mulher de cabelos desgrenhados/grisalhos e a irmã, o cunhado, os sobrinhos, etc. De forma ainda mais latente, também entre ela e seu filho, Trey, vivido pelo próprio Shults. A partir daí, é flagrante o abandono de câmeras livres, como a dos minutos iniciais, e a adoção de quadros estabilizados, de movimentos retos (seja em travellings, panorâmicas ou mesmo zooms) que, por contraste, ressaltam a instabilidade emocional de Krisha, cada vez mais desconfortável com a polidez familiar.

Vivida por Krisha Fairchild, em um papel aparentemente escrito para a atriz, a protagonista denuncia sua inadequação àquele ambiente desde quando reclama para si mesma da enormidade dos pátios das casas do bairro classe média em que a irmã mora. A partir disso, o vestido justo e a maquiagem pesada, escolhidos para o jantar, além do silêncio sem jeito mantido na cozinha, são fatores que apontam à sua marginalização dentro do círculo familiar. Aliás, Shults consegue ilustrar isso muito bem ao investir em panorâmicas que capturam o cenário em torno de Krisha, partindo dela em algum canto preparando seu peru recheado, então descortinando sua família entretida em conversas e interações orgânicas pela casa. O movimento circular termina sobre a mulher outra vez, como se a julgasse por comparação.

Além disso, o diretor sugere que a narrativa está sujeita à subjetividade de Krisha, principalmente perto do desfecho, quando a linearidade e a lucidez da trama se tornam reféns da sobriedade da protagonista. O que, por tabela, faz repensar os momentos anteriores do longa. Se nos sentimos impelidos a julgá-la devido ao que a narrativa nos propõe em termos de linguagem, então estávamos constatando a própria Krisha lançando um questionamento sobre si mesma, se diminuindo e se penalizando perante a família. Não fosse o suficiente, Shults ainda casa essa abordagem com uma estranha beleza plástica que assume formas inesperadas. Por exemplo, no acompanhamento, em câmera lenta, do conteúdo de uma forma sendo despejado no chão.

Krisha é hábil em sugerir que algo de ruim está sempre prestes a acontecer, principalmente por investir numa trilha cheia de experimentações instrumentais que insinuam a confusão crescente na cabeça da protagonista. Consegue, ainda, colocar em perspectiva noções como o isolamento e o preconceito internalizado que temos em relação às doenças que afetam a saúde mental – a situação poderia ser diferente se, ao invés de afastada, Krisha pudesse ter contado com a família durante esses anos? Nunca ficamos sabendo exatamente o que aconteceu de fato entre aquelas pessoas, o que nos impede de assumir lados e conseguir tanto compreender a mulher, como seus familiares, claramente machucados por ela.

Aí que se faz, portanto, eficaz a escolha do tom de horror empregado no projeto, pois, apesar de uma trama focada num drama de família, é preciso uma atmosfera mais sombria e cruel para ilustrar a solidão provocada pela falta de entendimento e perdão entre um indivíduo e aqueles compõem o grupo a quem estaria supostamente ligado para o resto da vida. Desse ponto de vista, Krisha é tanto um inseto repugnante quanto Gregor Samsa era alcoólatra.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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