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Sinopse

Um casal de ucranianos vive na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia no momento em que começa a Guerra em Donbas. Grávida, ela se recusa a abandonar a casa. Tudo complica quando um avião cai na redondezas.

Crítica

O inferno são os outros, já dizia Sartre. Mas esses podem estar mais próximos do que se imagina – ou do que se gostaria, para ser mais exato. Em Klondike: A Guerra na Ucrânia, os responsáveis por transformar a vida dos protagonistas em um legítimo caos são seus vizinhos, parentes e conhecidos. Isso, claro, numa leitura mais imediata. Pois estão todos se enfrentando em nome de interesses mais distantes. São peões sendo manipulados por jogadores poderosos, experientes e dissimulados, que não respondem às provocações imediatas, pois hábeis em esperar pelo momento certo de cada movimento. E, enquanto isso, arrastam inocentes, mas também ingênuos, levados a acreditar em promessas vãs em nomes de uma mudança que nunca chegará. Entre homens que se atacam uns aos outros, será a mulher a sofrer sozinha, e enfrentar as consequências imediatas desses embates e a lidar com os escombros deixados para trás. A violência é masculina, enquanto a dor é feminina.

Klondike era o destino para qual aventureiros de todo o mundo recorriam há mais de um século numa passagem que ficou conhecida nos livros de história como a ‘corrida do ouro’. Situado na fronteira entre o Canadá e o Alasca, na América do Norte, encontra agora paralelo na região de Donbass, entre Ucrânia e Rússia, motivo de disputa territorial entre os dois países durante décadas – e persiste até hoje. É lá onde moram Irka (a estreante Oksana Cherkashyna) e Tolik (Sergey Shadrin, de O Último Mercenário, 2021). Como qualquer casal, possuem suas aspirações. Pensam em trocar os móveis, comprar uma televisão maior, dar uma vida melhor para a filha que ainda vai nascer. Sim, pois Irka está grávida. E com aquela criança, uma expectativa por tempos mais seguros. Porém, tudo somente será possível num futuro que não sabem ao certo se daqui um mês ou se medido em anos. À frente deles, há apenas incerteza. Pois ao redor, o que veem é guerra. Destruição e separação.

No meio desse momento lúdico, enquanto compartilham planos (ou seriam fantasias?) no escuro, justamente para não despertar a atenção daqueles lá fora, o que parecia estar tão longe surge de modo avassalador, alterando a realidade deles para sempre. Uma bomba é jogada, e a casa deles se torna alvo. Foi engano, ficam sabendo depois. Mas quando se trata de paredes sendo derrubadas, moradias vindo abaixo e vidas sendo tratadas como moedas de troca, realmente importa se houve intenção ou não? O resultado destes atos é aquilo que permanece, com o qual terão que lidar, quer queiram, quer não. O homem pode gritar mais alto, se fazer de valente, exigir seus direitos com bravura e de modo enérgico. Mas de que isso adianta quando uma arma lhe é apontada na cara, quando não há mais onde dormir, quando os sonhos começam a se esfarelar? Seguem ansiando por mais, mas a característica maior do ser humano é a sua capacidade de adaptação. Quanto mais lhe tiram, mais se acostumarão com menos. Até nada sobrar, nem mesmo a dignidade de serem meros sobreviventes.

A diretora e roteirista Maryna Er Gorbach impõe sua verdade de maneira direta. O foco de sua ação está no casal de protagonistas, mas não se restringe apenas aos dois. A partir do momento em que não há mais paredes, o mundo se abre, assim como suas possibilidades. Cada quadro do seu filme não é composto pelo viés de uma estética apurada, mas pelo olhar frio da matemática. A discussão pode estar no primeiro plano, entre os personagens, mas o que se passa ao fundo tem tanta importância quanto, se não mais. Assim, o exemplo se torna concreto, e as múltiplas camadas de leitura se manifestam de forma simultânea. Há o desespero daqueles que querem ficar em pé, que insistem em recuperar aquilo que não há mais salvação. Ao mesmo tempo, há a movimentação dos que seguem em seus intentos nefastos, lutando batalhas que não são suas, motivados por conceitos vazios, que na hora que a vida – e a morte – se faz presente, poucos se lembram. Não se tem apenas a transformação, mas também – e mais do que tudo – uma adequação, uma conformação.

Dono de um desfecho duro, porém realista, pois entrega apenas a ponta do iceberg do que se pode ocorrer em situações como as aqui descritas, Klondike: A Guerra da Ucrânia tem outro ponto de interesse que motiva sua apreciação durante o seu lançamento. Por mais que suas primeiras exibições estejam ocorrendo em 2022, sua trama está ambientada em 2014, oito anos antes. Ou seja, se mostra absurdamente atual, mesmo com quase uma década de atraso – ou de antecipação, dependendo do ponto de vista. Somente aqueles que olham para o passado poderão se precaver para o amanhã. E quando, enfim, se entende que esses são processos cíclicos, de nada adianta seguir batendo nas mesmas teclas. É preciso aprender e mudar. Pois, no final das contas, ficará cada um por si. E a vida, tão peremptória, também encontrará seu limite. E quando isso acontecer, pelo que mais se lutará?

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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