Crítica


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Sinopse

Em Meu Bolo Favorito, aos 70 anos e tendo uma vida solitária, Mahin está decidida a ter uma nova paixão. E certo encontro casual torna uma noite inesquecível.

Crítica

A diferença está nos detalhes. Se não, se faz necessário destacar o quão importante é estar atento à rotina de Mahin (Lili Farhadpour, de A Plantação de Laranjas, 2018, em estado de plena graça). Eis aqui uma mulher que não consegue dormir à noite, que passa as madrugadas em claro assistindo à televisão, que dorme até depois do meio-dia e que foi deixada para trás por tudo e todos: o marido que morreu há décadas, os filhos que se mudaram para outros países, as amigas que moram longe e cujos reencontros são cada vez mais raros. Mesmo assim, a protagonista de My Favourite Cake não “atirou a toalha”, como se diz em casos assim, e segue na luta. Apesar de já estar com 70 anos, como ela mesma declara, “ainda possui muito pela frente”. E por isso ainda acredita que as coisas possam melhorar para o seu lado. Não apenas na busca por um companheiro, por algo com o que se ocupar no dia a dia, ou mesmo no resgate da boa forma da juventude (aquela que lembra com orgulho, mas que a timidez a impede de revisitar com maior frequência, mesmo em que em pensamento). Determinada, não espera pelos outros e decide por conta própria estar na rédea dos acontecimentos. Se estes os levarão a um desfecho mais ou menos satisfatório do que aquele que se pode imaginar previsível, esse não é o ponto. A questão, ao menos aqui, é mais o caminho e menos o destino.

Ela gosta de beber “café glacê”, mesmo que essa receita não seja oferecida há anos. Quando lhe sugerem um affogato, tal proposta lhe causa mais espanto do que curiosidade. Essa reação poderia indicar alguém não acostumada às mudanças, apegada ao modo antigo de ver as coisas. Mas Mahin não é assim. Não tem medo de se adaptar, apenas procura fazer tais contornos de modo que a ela sejam mais confortáveis. É por isso, também, que não teme pelo que lhe possa acontecer. Já viveu muito, e seu passado como enfermeira a preparou para o pior que o homem pode fazer a si mesmo e aos outros. A guerra nunca lhe foi estranha, e sabe que não é baixando a cabeça que conquistará o respeito daqueles que a subestimam. Tanto é que, quando presencia a polícia dos ‘bons costumes’ tentando aprisionar garotas apenas por estas não estarem com seus hijabs (os véus) ajustados de forma a cobrir seus cabelos por completo, não pensará como tantos (“esse assunto não é comigo”), e sem hesitação passará ao confronto. Talvez não faça a diferença para todas, mas se uma delas tiver sua segurança garantida, já será o bastante.

Da mesma forma, não ficará restrita ao mesmo cenário (cama-jardim-sala-cozinha) por muito tempo. Cansada de ter apenas a solidão como companhia, fará o que estiver ao seu alcance para mudar essa condição. Cada passo, porém, é dado com cuidado. Primeiro um flerte malsucedido na fila da padaria. Depois, um ensaio contido em casa, com uma maquiagem mais ousada e vestidos que há muito estão trancados no armário. Uma visita ao hotel que viveu dias melhores apenas confirma essa vontade de lutar por si. Quando escuta, no restaurante ao qual foi sozinha – mesmo tendo feito convites, as negativas recebidas não a demoveram dessa vontade de mudança – que o senhor da mesa adiante faz todas as suas refeições na rua pois não tem quem cozinhe para ele à sua espera, ela percebe nessa declaração mais do que uma oportunidade. Diante dela se abre uma porta que há muito tem aguardado, e que não permitirá que mais uma vez se feche antes da sua passagem. O modo como dele se aproxima e a subsequente abordagem ganha ares de comédia, mas por baixo destes panos há um drama antigo em desenvolvimento.

Mahin e Faramarz (Esmaeel Mehrabi, de Nima Yoshij, 2007) seriam um casal como qualquer outro, não fossem os rumos distintos de suas vidas – e por terem se conhecido há apenas alguns minutos. Por isso, a atitude firme dela em convidá-lo a ir até sua casa, sem muitos rodeios, afirmando com todas as letras estar cansada dessa vida solitária e ter identificado nele alguém que possa compartilhar do mesmo sentimento, é também marcada pelo protesto. Trata-se de um movimento de rebeldia e inconformidade contra tudo que o estado e a religião em vigor no Irã declara ser possível a mulheres como ela. O senhor, por sua vez, também não aceita de forma pacífica tudo que lhe dizem. Mesmo tendo lutado como soldado, passou um mês atrás das grades apenas por insistir em praticar o instrumento musical que tanto prazer lhe proporcionava – ainda que fosse condenado pela ordem ao seu redor. Eis, enfim, um encontro de almas. Ela o chama, ele aceita. E as próximas horas que passarão juntos, entre taças de vinho e danças desenvoltas ao redor da sala de estar, entre o ajuste das luzes do pátio externo e o preparo do seu bolo favorito, representarão uma longa espera tomada por silêncios e frustrações. O preço por terem se permitido tamanha ousadia talvez seja alto demais, mas nem por isso deixarão de aproveitar até o último instante.

Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha foram selecionados para o Festival de Berlim pela primeira vez com o drama O Perdão (2020), recebido com entusiasmo e premiado nos eventos de Valladolid e de Zurique, entre outros. O casal de realizadores voltou ao certame berlinense com o trabalho imediatamente seguinte da dupla, uma comédia romântica que em nenhum momento esquece não apenas o contexto no qual sua ação está inserida, mas também a dimensão que cada ato dos seus personagens pode alcançar frente ao controle absoluto de um governo que insiste em calar seus cidadãos. Tanto é que ambos foram proibidos de viajar e tiveram seus passaportes apreendidos após a confirmação de que My Favourite Cake os levaria mais uma vez à Berlinale. Mesmo sem a presença dos diretores, o filme foi exibido e a comoção foi geral. Quando dois septuagenários ousam ir além do que lhes é permitido, arriscando o que está ao alcance deles em busca da conquista mais básica – a felicidade – qual exemplo resta aos demais, tanto na audiência quanto na ficção, frente a um mundo que urge por mudanças? As revoluções nem sempre tem data para começar ou mundos a serem transformados. Por vezes, podem ser mais íntimas, ainda que igualmente poderosas.

Filme visto durante o 74º Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2024

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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