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Sinopse

Joana Oliveira e Kevin Adweko se conheceram vinte anos atrás, quando estudaram juntas na Alemanha. Depois, a brasileira e a ugandense voltaram para seus países de origem. Hoje, na casa dos 40 anos de idade, elas decidem se reencontrar. A viagem de Joana ao continente africano se torna a oportunidade de conversar sobre a passagem do tempo, a maternidade, os relacionamentos e o racismo.  

Crítica

Kevin (2021) impressiona desde a premissa. A diretora Joana Oliveira efetua uma viagem a Uganda para reencontrar Kevin Adweko, com quem estudou na Alemanha, 20 anos atrás. Por definição, viagens carregam uma finalidade: viaja-se para conhecer algum lugar, para experimentar algo, para fazer alguma atividade. A priori, a cineasta não possui outra intenção além do contato com a amiga, o que surpreende inclusive os amigos de Kevin. Joana não deseja fazer turismo, nem busca uma imersão na cultura ou história local. Muitas cenas se passam com ambas sentadas na sala de estar, ou dentro de um carro. O senso de espetáculo associado à descoberta de um país distante está ausente desta jornada íntima. O deslocamento servirá a expiar dores e obter certos aprendizados, no entanto, a narrativa nunca se encaminha com este propósito. A cineasta se desloca para se encontrar em casa: é curiosa a sensação de que, uma vez perto de Kevin, Joana está finalmente confortável. A imagem das duas mulheres cozinhando e cuidando de três crianças pequenas sugere uma configuração possível de família, formada por laços afetivos.

Kevin, documentário de Joana Oliveira

A redução de dois continentes a duas mulheres, e de um país novo a uma casa de classe média, jamais implica em qualquer sentimento de aleatoriedade ou descaso com a confecção cinematográfica. Muito pelo contrário, a diretora efetua uma escolha rígida por planos fixos, posicionados de modo a captarem ao mesmo tempo a dupla de personagens e o espaço ao redor, e também abraçarem possíveis deslocamentos ou gesticulações. O plano de conjunto assume uma função primordial neste contexto, sendo encarregado de captar movimentos dentro da imagem, ainda que jamais se movimente por si próprio. A escolha resulta num dispositivo cúmplice o suficiente para estar perto de Kevin e Joana, porém distanciado o bastante para preservar a naturalidade das interações entre elas. O estrito controle dos quadros (a câmera espera pelas mulheres quando chegam de uma viagem, aguardando a descida da van do lado de fora do automóvel) se combina com o despojamento das conversas, que não soam roteirizadas, nem condicionadas pela criadora. A imagem raramente se fecha em closes-ups muito próximos, mas tampouco se afasta a ponto de espiar as personagens à distância. Nesta posição, o espectador se converte num hóspede suplementar, sentado à sala junto de Joana e das crianças.

Inicialmente, as conversas versam sobre banalidades – o que possuiria significado notável em si, enquanto valorização do cotidiano e naturalização do olhar estrangeiro. Aos poucos, discretamente, temas maiores se introduzem nas falas durante os cortes de cabelo e brincadeiras com os pequenos. Discute-se as dificuldades de criar os filhos sozinha, a decisão de usar um penteado avesso às expectativas conservadoras, a dor de um aborto espontâneo, as pressões quanto à maternidade. O filme sustenta a leveza em todos os momentos, o que jamais minimiza o peso destas questões, apenas impede que monopolizem a trama. Talvez a melhor cena ocorra na sequência relacionada ao rafting, quando a diretora desiste de praticar o esporte. Uma preciosa elipse nos oculta os motivos da mudança de ideia, para que seja comentada mais tarde por Kevin, ao invés de Joana. Numa longa tirada, ela debate racismo, culpa branca, turismo em lugares pobres, salvacionismo e colonialismo europeu. “Hoje, o chicote é mais sutil”, resume a anfitriã a respeito do preconceito sentido em suas viagens à Alemanha. Por trás da aparência trivial, desenha-se um diálogo franco sobre questões fundamentais da contemporaneidade.

O resultado transmite notável poder de metonímia e metáfora (vide a transformação do cabelo, a foto com as bananas, a festa de casamento sem som). Kevin se sobressai pela montagem impecável de Clarissa Campolina, cujas elipses microscópicas se tornam fundamentais na busca por equilíbrio entre o olhar da brasileira, da ugandense e do espectador. A duração das cenas e o ponto em que se interrompem preservam a fluidez e fazem com que o peso das temáticas reverbere nas sequências seguintes, sobretudo no que diz respeito à gravidez e à maternidade. Em paralelo, a direção de fotografia e o tratamento de som valorizam o local sem embelezar as diferenças, nem sublinhar exotismos. O avesso do cinema turístico costuma se encontrar no cinema da denúncia de mazelas. Ora, apesar da atenção e do interesse às divergências culturais, a cineasta preserva a postura de quem jamais poderia discursar sobre o local, preferindo escutar o que Kevin tem a dizer. Muito mais interessante do que apresentar algum cenário paradisíaco é a compra de um doce de gergelim quando a dupla fica presa no engarrafamento. Trata-se de um acolhimento tão específico quanto universal: podemos não ter o mesmo doce em nossas cidades, mas nos identificamos com o cenário de vendedores ambulantes no trânsito.

Por fim, Kevin se torna um belíssimo filme sobre amizade. Joana Oliveira aproveita da ficção a capacidade de domínio do real, e do documentário, o valor da espontaneidade. O foco na ternura entre as protagonistas foge tanto à nostalgia da juventude quanto à alienação do mundo ao redor. A política se faz cotidiana, como a sociedade invadisse a casa de ambas as personagens. Esta constitui uma das abordagens mais potentes do cinema político, no caso, aquela que não torna a linguagem refém de uma mensagem importante. Trata-se de uma política dos afetos, de uma diretora branca e de classe média, ciente de sua posição de mulher branca e de classe média, e disposta a questionar seus posicionamentos ao longo do filme, diante dos olhos do espectador. Ela destaca com precisão tanto a similaridade das experiências de ambas, enquanto mulheres (os anseios comuns à vivência feminina em qualquer parte do mundo), e a diferença de percepção devido aos países, linguagens e costumes (é muito diferente crescer no Brasil e em Uganda). O filme possui plena consciência de seus objetivos e de sua linguagem, sendo ambicioso sem extrapolar o porte de sua produção, e modesto sem ignorar conflitos importantes relacionados à nossa dívida histórica com o continente africano.

Filme visto online na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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