Crítica


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Sinopse

Enquanto espera pelo voo no terminal que projetou há 20 anos, o arquiteto Jeremy conhece Texel. A desconhecida insiste em contar sua história de vida e as coisas ficam estranhas quando o relato começa a parecer com a vida de Jeremy.

Crítica

Se a literatura policial, do clássico whodunit, ou seja, “quem é o responsável?”, que tem em Agatha Christie um dos seus maiores nomes, deixou algo como legado – além do passatempo envolvente e passageiro – é que, na maioria das ocasiões, é o fim que justifica os meios. Ou seja, é um tipo de entretenimento não reconhecido pelo desenvolvimento elaborado ou meandros engenhosos, mas, sim, por um desfecho surpreendente, por mais que tal resposta esteja diante de todos. É nesse conceito em que se apoia o cineasta catalão Kike Maíllo em Inimiga Perfeita, um thriller que durante a maior parte do tempo se esforça em disfarçar aquilo que é evidente, como numa lista a ser preenchida pela cartilha do gênero: a vítima, provavelmente, não é quem se espera, o vilão tem seus motivos para agir de modo, aparentemente, desconexo, e suas razões, invariavelmente, estão ligadas ao passado do protagonista. Ninguém é santo, portanto. Menos ainda o espectador que se deixar levar por algo que deveria estar em desuso, e não reciclado como inovador.

Conhecido pela ficção-científica Eva: Um Novo Começo (2011) – que lhe rendeu o Goya de diretor estreante – e pelo policial Toro (2016) – estrelado por Mario Casas e Luis Tosar – Maíllo começou no cinema em projetos bem-sucedidos, como o suspense O Orfanato (2007), produzido por Guillermo del Toro e no qual atuou como supervisor do roteiro. É motivo de decepção perceber que, mesmo passado tantos anos, ainda não tenha conseguido alcançar o grau de excelência verificado ao colaborar com cineastas parceiros. Deixando claro seu interesse comercial num mercado mais amplo, Inimiga Perfeita tem como personagens principais um homem polonês e uma garota holandesa – e, acredite, essas origens são repetidas diversas vezes ao longo da trama – em um encontro fortuito em Paris. Os três destinos, quando combinados, não soam tão díspares ao gerar diálogos inteiramente em inglês, por mais que essa não seja a língua natal de nenhum dos envolvidos, e muito menos do cenário onde se encontram. É tudo farsa para inglês ver, como afirma o ditado.

Essa mesma chave fantasiosa se identifica quando o protagonista, o arquiteto Jeremiasz Angust (Tomasz Kot, do oscarizado Guerra Fria, 2018, que certamente já viveu dias melhores), chega ao aeroporto por ele mesmo planejado em busca do voo que o leve de volta para casa. Em meio à pressa de horários antecipados e prazos não cumpridos, encontra tempo para admirar a maquete de sua obra. Essa referência, porém, se tornará uma constante, mas não pelo olhar dele. Será através de um elemento externo, nunca identificado. E se no primeiro instante uma gota vermelha se destaca no meio de tanto branco – indicativo de sangue, acidente, até mesmo morte – o curioso será verificar que, a cada revisita, algo foi alterado naquele contexto em miniatura. Até o ponto dele mesmo se encontrar inserido naquele ambiente. Ou seja, há uma mimetização do real naquele universo espelhado. A partir dessa constatação, é sabido que nada daquilo visto em cena será, de fato, um retrato fiel da realidade.

Dessa forma, é mais fácil – e até mesmo previsível – ler o encontro supostamente gratuito entre Angust e Texel Textor (Athena Strates, vista em A Grande Mentira, 2019). No trajeto de despedida, alegadamente sem explicação plausível, ele decide atender ao pedido de uma estranha, sob forte chuva, e dar a ela carona, uma vez que ambos se dirigem ao mesmo destino. Ao chegarem, a desconhecida decide não largar do pé dele, se manifestando ao seu redor onde quer que vá: seja na sala vip, no saguão de espera, no bar ou até mesmo no banheiro masculino. Não precisa ser experiente diante de tais parâmetros para antecipar que alguém nessa mistura está sofrendo de algum tipo de alucinação. Quando a companhia que lhe é imposta decide contar sua própria história, fica ainda mais óbvio que, em algum momento do seu relato, os eventos descritos irão se cruzar com algum pecado tempos atrás cometido por aquele que tão inocente parece ser, apenas para que, aos poucos, essa máscara comece a se desintegrar. Clube da Luta (1999) foi um marco quando chegou ao público, há mais de duas décadas, mas como sua manobra narrativa já foi empregada até mesmo em uma comédia romântica nacional como Loucas pra Casar (2015), não sobra muito com o que se surpreender frente a tais reviravoltas.

Kike Maíllo contou com as colaborações de Cristina Clemente e Fernando Navarro, ambos roteiristas com quem já havia trabalhado, nessa adaptação do romance Cosmétique de L’Ennemi, de Amélie Nothomb. O que se destaca na abordagem que propõem é que, mais importante do que os caminhos trilhados, é o ponto para onde se dirigem. Então, pouco importa a quantidade de absurdos e inverossimilhanças que vão acumulando pelo percurso, pois a fé de que tudo será perdoado diante de uma revelação inesperada lhes é inabalável – e, no mínimo, traiçoeira. Afinal, pouco do que se expõe soa particularmente interessante, visto que há uma indissociável sensação de déjà vu do início ao fim. Todos os movimentos são no sentido de enganar a audiência, e quando essa se dá conta que nem mesmo tamanha dedicação será capaz de provocar emoções mais fortes, apenas a confirmação do que se era possível antecipar, tal traição se mostrará fatal não uma, mas duas vezes: pela reincidência do clichê e pela tentativa fracassada de impor como novidade algo há muito desgastado.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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