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Sinopse

Uma ousada poetisa austríaca e um dramaturgo suíço ligeiramente conservador. A relação entre os escritores Ingeborg Bachmann e Max Frisch.

Crítica

Ingeborg Bachmann (1926-1973) foi uma das poetisas alemãs mais importantes do século XX. Margarethe von Trotta é uma cineasta, igualmente nascida na Alemanha, de relevância internacional – ao longo de uma carreira que percorre décadas, acumula premiações em festivais como os de Berlim, Biarritz, Montreal, Telluride, Valladolid e Veneza, entre outros. O anúncio de que as trajetórias das duas iriam se cruzar, através de uma cinebiografia sobre a primeira a ser realizada pela segunda, levantou altas expectativas. É com pesar, no entanto, que se verifica que Ingeborg Bachmann: Journey into the Desert não está à altura do que se poderia esperar dessa união. Ao invés de investigar as inspirações da escritora, sua veia criativa e como se deu a formação de uma das vozes femininas mais relevantes do seu país, o que se vê em cena é uma novela de segunda categoria, centrada entre as idas e vindas de Bachmann com os homens com os quais se envolveu ao longo dos anos, em especial com o também escritor Max Frisch. Um reducionismo que beira ao constrangedor, não apenas pelo fato de se propor a enxergar esta mulher apenas pelo apelo que provocava em seus companheiros masculinos, como também pela própria representatividade deste que, menos do que um amante, foi um censor, uma montanha a ser suplantada durante o curso de sua caminhada.

É importante que isso se faça claro pois Ingeborg e Max ficaram juntos por não muito mais do que dois anos. Antes ela havia tido outros relacionamentos importantes e de igual – senão maior – interferência em sua obra, em especial com o poeta surrealista judeu Paul Celan (uma paixão fulminante de poucos meses que se estendeu via correspondência após o afastamento físico entre eles) e com o compositor musical Hans Werner Henze (com quem ficou por quatro anos e chegaram até a cogitar casamento, apesar da evidente homossexualidade dele). Firsch, porém, foi fogo que se acendeu com intensidade, permaneceu fulgurante por menos tempo do que se poderia esperar, e acabou por se ver apagado antes mesmo do que qualquer um dos dois poderia ter apostado. Invejoso do alcance e da reverência que ela cada vez mais motivava, demonstrava essa falta de controle através de um ciúme excessivo e de uma constante vigilância, que tanto a abafava em seus ímpetos criativos, como também cerceava qualquer movimento em busca de motivações externas. Apesar de ambos trabalharem na mesma área, ao invés de colaborarem mutuamente no estímulo ao potencial que guardavam, terminaram por agir no sentido contrário. A separação, como se pode imaginar, era apenas questão de tempo.

O maior incômodo da encenação é a artificialidade através da qual os eventos expostos em cena se dão. Primeiro, vem da estrutura narrativa, elaborada a partir de uma série de flashbacks e fast fowards que em nada colaboram com um melhor entendimento da proposta. Depois, há a construção dessas cenas, tão aleatórias que beiram o caricatural. Um bom exemplo é o momento em que ela, sozinha em um café, é abordada por dois homens desconhecidos – está em um país estrangeiro e não fala a língua local. A troca entre eles se dá mais por sorrisos e olhares, e quando o companheiro dela se aproxima, os que a circundavam até então voltam aos seus lugares de origem, constrangidos. Nesse momento, a protagonista confidencia ao parceiro que “sempre quis ser cortejada por homens mais jovens”, ao que ouve dele como resposta “eu também”. Mais adiante, ele chega ao quarto dos dois, acompanhado pelos rapazes, e os quatro dividem a mesma cama naquela noite. A câmera os enquadra de cima, e estão quase imóveis. Não há nudez, nem mesmo sexo, muito menos tesão, neste encontro. O que se busca é apenas um efeito estético. Bonito aos olhos, e vazio aos sentimentos.

Ingeborg Bachmann é interpretada por Vicky Krieps, atriz que desde Trama Fantasma (2017) tem recebido cada vez mais atenção em Hollywood. Nos últimos anos trabalhou com nomes como Mia Hansen-Love e M. Night Shyamalan, e esteve em destaque no recente Corsage (2022). Porém, o que lhe é comum em cada uma dessas atuações é uma apatia, quase um desinteresse, como se distante do calor do debate, prestes a cair de sono. Este mesmo desempenho também se faz presente por aqui, tendo como desculpa um misto de atordoamento pelo comportamento errático do marido ou um grau de abatimento após os dois decidirem seguir por caminhos distintos. Ronald Zehrfeld (Bárbara, 2012) se mostra desconfortável do início ao fim como Max Frisch, sem conseguir imprimir a atração, e nem mesmo o desprezo, que serviu tanto para uni-los como para afastá-los. Já o jovem Tobias Samuel Resch (Breaking the Ice, 2022), como o escritor Adolf Opel, aquele que a tiraria de um momento de marasmo existencial e o colocaria novamente em rota com os seus instintos ao acompanhá-la durante um passeio pelo deserto africano, é o único capaz de inserir algum ânimo a um cenário tão desprovido de calor humano.

Essa viagem pelo deserto, aliás, que também dá título ao filme, é outro elemento cênico deslocado, visto quase como um jardim protegido, e não um ambiente propício às intempéries da natureza. Ao invés de selvagem e imprevisível, a passagem por ele se dá de maneira comportada e segura. O que, é possível imaginar, não pudesse ser mais distante da produção intelectual da homenageada. Sem se preocupar com os pontos altos de sua carreira – alguns brevemente citados, quando não ignorados por completo – e muito menos com o desfecho inesperado de sua história (morreu queimada, em um incêndio, aos 47 anos, que acredita-se tenha sido provocado por um cigarro deixado aceso, uma hipótese nunca comprovada), Ingeborg Bachmann: Jouney into the Desert também não faz questão de registrar a relevância da autora até os dias de hoje e a repercussão que seus escritos tiveram não apenas no cenário cultural, mas também junto à luta e à representatividade feminina nas artes. Oportunidades urgentes, aqui relegadas a um segundo – ou até mesmo terceiro – plano, vistas como secundárias, quando, na verdade, compõem o real mote de todo esse resgate.

Filme visto durante o 73º Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2023

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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