Crítica

O Mekong é um extenso rio que atravessa a Tailândia e o Laos, fazendo com que os países dividam suas águas. Em um hotel situado nas margens desse rio, no lado tailandês, um grupo de pessoas passa alguns dias convivendo com histórias e com espíritos. Carne e espírito se misturam na confusão das imagens e dos significados, das ações e das reações, enquanto a música compõe o “clima” (poucos filmes são tão ambientados como os de Apichatpong Weerasethakul) que, antes de sensibilizar as plateias, busca paralisá-las. Não há mais espaço para remontagens narrativas, os personagens são aquilo mesmo que aparentam ser, só que um pouco mais. Para o diretor, mostrar parece mesmo ser uma forma de desmitificar as criaturas, de contar uma história (do passado) para lhe roubar a fantasia, a criação, a verdade e a mentira. O espírito, esse invasor, é algo como um mensageiro fabuloso que persiste em sua forma de resistência – espíritos também sentem fome; e comem. O impulso mais terrível da espécie, isto é, comer a carne do outro, é o grande espetáculo a ser filmado juntamente à própria relação sentimental que estabelece com os personagens. Os temas, carne, espírito e natureza representam esse contato de Apichatpong com o que lhe é mais caro: o passado (memória). Hotel Mekong, trata, no entanto, de uma estética contemporânea.

Em contato com a natureza, o espírito deseja desprender-se dela, corroendo seus entes. Mas os espíritos, aqui, são amigos. Os personagens não são mais que suas roupagens, e assim servem de corpo para que o invasor se refestele sob suas feições e sobre sua pele – e sob as águas do Mekong. Todos comem todos, embora ninguém morra: o corpo é um rito de passagem, desapegado de si mesmo, todo formoso e todo estético, mas que tem um passado, e isso Apichatpong explana através dos diálogos que envolvem as imagens: são histórias antigas, sobre como viviam, o que faziam, sobre quem eram. A representação é, todavia, a mais simples possível, isto é, a câmera não realiza movimentos, embora a ação interna de cada plano exija sempre a atenção do olhar; os personagens não saem de quadro, apenas o invadem; a câmera capta muito o conjuntos das expressões e dos gestos, as falas são cadenciadas. Se Hotel Mekong possui um traço indivisível que é a não espetacularização da imagem, e que tanto sua é sua força como sua beleza, também torna seus procedimentos simbólicos peças de um jogo arriscado de significações.

Pois se a relação espiritual é em si fantasia, e se está no cinema, é fantasia, então a inscrição desses no plano dramático não é mais que sua destruição. Ora, filmar fantasmas de maneira que eles não sejam mais espertos nem mais imbecis que os humanos é algo como criar livremente a ligação do corpo com o espírito a custo de preconizá-lo – mas não no sentido religioso. O ambiente do hotel, das sacadas e das áreas internas, favorece os efeitos que o filme busca criar, e onde cenas de lamúrias misturam-se com outras de aflição e medo. Mas Apichatpong não demonstra nenhum apego desmedido a sua forma, ao contrário, localiza nela o fluxo que captura todos os instantes da ação ao não se permitir cortá-la – e abraça a temporalidade da ação com a música que toca intensamente ao longo do filme. A música que, como o rio, atravessa o espaço do registro. Se por um lado o filme não tem a mesma pungência dos anteriores – Tio Boonmee Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010) e Mal dos Trópicos (2004) em especial – não raro mantém a escrita do cinema deste realizador: sugar as energias da vida e expô-las com a menor perda possível de sua própria magia.

Um filme em que o espírito não apresenta mais que sua resistência. Resistir é, para o fantasma, comer a carne humana. Um caso de vida na morte. Dessa ligação do natural com o sobrenatural, e antes com natureza, ele quer existir, mesmo sabendo que não é humano. Aparece ali quando não é esperado (pois Hotel Mekong é um filme de mistério) e vai embora quando é descoberto. Está e não está na vida a um só tempo, assim como o cinema. Nessa tetralogia das relações (corpo, espírito, natureza e cinema) aqui exposta, se desdobram momentos de pura força (como a cena em que mãe e filha comentam suas vidas na cama do quarto, entre lágrimas e sorrisos) com alguns puramente elucidativos de captura das trivialidades, Apichatpong conduz a transformação do cinema a seu ritmo, aquele das catalisações, das vulnerabilidades e das emoções. A câmera existe para salvar a imagem à memória. Não é tanto sua forma, que já não tem mais o mesmo frescor, mas sim sua simples procura.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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