Hilda Hilst Pede Contato

Crítica

A escritora Hilda Hilst tentou durante um bom tempo captar vozes do além por meio do ruído branco das ondas do rádio. Gabriela Greeb parte desse exercício insólito para abordar a artista que transitou com desenvoltura entre a prosa e a poesia, se tornando um dos principais nomes da literatura brasileira. Das esferas, a cineasta destacou a lírica, fazendo de seu longa-metragem um poema alusivo à obra que vem sendo amplamente estudada ao longo dos anos. Para tanto, entremeia uma série de dispositivos, como a apropriação das gravações de Hilda, justamente durante esse esforço de acessar os ecos dos mortos, e a representação centralizada na interpretação de Luciana Domschke, que vive a protagonista como se fosse uma entidade transcendente. Em Hilda Hilst Pede Contato, também há testemunhos de amigos que passaram pela Casa do Sol, morada situada na cidade de Campinas em que se deu essa busca pelo plano intangível, por uma interlocução, inclusive, com gente bastante conhecida das artes.

A construção de Hilda Hilst Pede Contato é marcada por uma ênfase que tem a ver com o intento da realizadora de colocar as coisas numa esfera profunda. As fitas magnéticas esticadas, pelas quais a câmera passeia repetidas vezes, simbolizam os elos de Hilda, dos plenamente consolidados, vide as amizades festejadas por diversas personalidades, e mesmo aqueles estabelecidos em virtude de sua escrita, da arte que quebra a onipotência da morte. Uma das depoentes chega a corrigir-se quando fala da escritora no passado, dizendo que ela vive, ou melhor, que sua criação permite-lhe ainda pairar na realidade como uma sombra benfazeja. Narrativamente, o filme segue por terrenos que o aproximam de uma ordem experimental, detendo-se sobremaneira nas texturas, nos feixes de luz que atravessam as cenas, nos ruídos das ondas de rádio que não contém as respostas que Hilda deseja e tampouco vozes preenchendo lacunas. Porém, a reiteração enfraquece gradativamente o discurso.

Hilda Hilst Pede Contato é uma realização em constante crise, principalmente pela dificuldade de Gabriela Greeb para seguir o fluxo de informações que ela própria ressalta ao longo das explanações. Mantendo-se excessivamente aferrada à concepção solene, ela subaproveita, por exemplo, a complexidade que os convivas relembram à mesa, num banquete regado a vinho em homenagem à falecida, com a qual, de certa forma, mantém vínculo através da memória. Eles celebram o bom humor de Hilda, sua capacidade de falar determinadas coisas para quebrar a pompa de um círculo naturalmente empolado. Filmagens do passado, ou seja, novamente reminiscências que promovem esse “contato”, mostram a escritora fazendo gestos obscenos com um sorriso estampado, o que corrobora a descrição dos vivos. Mas, o filme não investe nessa modulação, permanecendo num campo carregado, afetado pela concretude de uma proposta não arejada por componentes estranhos à vontade de exalar profundidade.

Provavelmente por receio de sucumbir ao didatismo, Gabriela Greeb incorre em repetições elementares e estilísticas que crescentemente sufocam Hilda Hilst Pede Contato, tornando-o uma projeção curiosa da personalidade singular de Hilst, mas indisposta a atender desígnios imediatamente próximos a essa comunicação com o mundo dos mortos. A protagonista deseja falar com Franz Kafka, Vladmir Herzog – chegando a questionar a este se fora assassinado ou cometera suicídio –, Clarice Linspector, mas não há uma investigação, sequer poética, acerca do que levava a escritora a aspirar por informações do além-morte. A beleza dos planos, a qualidade sonora e a exploração das texturas são instâncias que depõem a favor do longa-metragem. Porém, a preocupação com os aparatos é mais perceptível que o ímpeto de perscrutar Hilda Hist em sua multiplicidade. O percurso narrativo é restrito a uma coleção de momentos cinematograficamente bonitos, mas combalidos pela ausência de oxigenação.

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Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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