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Sinopse

Alexander Hamilton foi um dos pais fundadores dos Estados Unidos da América. Dono de um estilo rebelde, ele demorou a ter sua capacidade de liderança reconhecida nas guerras de independência, até investir na política e se tornar o primeiro Secretário do Tesouro no país. No entanto, a duradoura rivalidade com Aaron Burr provoca a ruína de Hamilton e sua morte precoce.

Crítica

Deve ser uma experiência deslumbrante assistir ao musical Hamilton na Broadway. A história de Alexander Hamilton, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, e antigo Secretário do Tesouro na virada do século XIX, é narrada com vigor impressionante, incluindo discussões complexas sobre política, economia, o papel do país nas guerras e as transformações sociais durante os governos de George Washington e John Adams. O período é representado unicamente através de canções, em apresentações notáveis de canto e dança, sem uma pausa sequer entre cada música. Jogos de luzes, um palco giratório e outros efeitos são empregados ao longo de mais de 2h30 de duração, enquanto o criador Lin-Manuel Miranda toma a interessante liberdade de imaginar Washington, Aaron Burr e Thomas Jefferson enquanto homens negros. Trata-se de um projeto ambicioso em termos narrativos e cênicos, resultando em um dos maiores sucessos de público e crítica na história do teatro contemporâneo. Não era de se espantar que o cinema logo se apropriasse desta peça, seguindo os exemplos de Chicago (2002), O Fantasma da Ópera (2004), Cats (2019), Wicked (2021) e tantos outros.

A transposição, no entanto, produz alguns ruídos. Primeiro, seria inapropriado falar em “adaptação”, visto que a linguagem teatral não cede um milímetro sequer para se adequar ao cinema. Pelo contrário, é este quem precisa se ajustar, da melhor maneira possível, à gravação do espetáculo ao vivo. A câmera adota a postura de um espectador na plateia, porém em diferentes poltronas – ora de frente, ora à esquerda ou direita, e ainda no mezanino, mais perto e mais longe. De qualquer maneira, preserva-se a disposição frontal do palco. “Experimente a produção original da Broadway”, afirma o cartaz oficial. De fato, a Disney pretendia documentar a peça, preservá-la sem modificações. Os produtores buscam fornecer ao público, em suas casas, a sensação de se encontrar diante do musical. Por isso, preservam o apresentador solicitando ao público que desligue os telefones celulares no início, o intervalo no meio da peça, os aplausos e agradecimentos no final. Seria justo dizer que esta versão possui ambições artísticas limitadas ao recusar as ferramentas específicas do audiovisual: ela se contenta em ser a apreensão de uma peça, a comprovação de algo que existiu, um dia, em frente às câmeras. O cinema assume uma função curiosamente passiva e submissa face ao teatro.

Entretanto, disponibilizado enquanto filme, o resultado traz problemas evidentes. Primeiro, pela seleção do olhar: enquanto o palco permite que o espectador observe elementos distintos ao mesmo tempo (ele pode se atentar ao cantor principal, depois aos coadjuvantes, e então aos dançarinos, aos cenários, aos figurinos), o enquadramento consiste num recorte. Para o diretor Thomas Kail, interessam apenas os protagonistas de cada cena: quando Alexander Hamilton (Lin-Manuel Miranda) canta, é ele que vemos; quando Thomas Jefferson (Daveed Diggs) efetua sua defesa política em forma de versos, enxergamos a apresentação deste, e assim por diante. Ora, esta hierarquia impede que acompanhemos as outras vozes, e sobretudo o intenso trabalho dos bailarinos e do cenário durante os números musicais. Dispositivos como o plano-sequência possibilitam ao espectador passear o olhar durante uma cena, escolhendo o elemento onde prefere se atentar. Neste caso, com seus planos fixos e cortes secos, somente os protagonistas importam. Segundo, pelo distanciamento do dispositivo: a objetiva se encontra, na maior parte dos casos, a muitos metros do palco, privilegiando a percepção do corpo inteiro (o plano de conjunto) ao invés dos rostos, dos objetos, dos fragmentos de corpos. Por isso, a peça grandiosa se apequena em meio aos enquadramentos excessivamente abertos. A situação se torna ainda mais grave pelo lançamento em streaming: exceto pelos poucos privilegiados com acesso a um telão em suas casas, o espectador será condenado a enxergar mini personagens sobre um palco distante. Os close-ups se tornam raros, e os detalhes (de uma mão, um objeto, um corpo dançando ou uma arma empunhada) são inexistentes.

Curiosamente, a peça se prestaria a uma adaptação muito rica, no sentido cinematográfico do termo. A possibilidade de passear por entre os espaços, levar os duelos mortais às ruas, apresentar o caso extraconjugal de Hamilton e as disputas nos tribunais renderia bons frutos na mão de um cineasta experiente. O espetáculo possui, em si, recursos típicos do audiovisual, como a capacidade de “rebobinar” as cenas ou de propor uma inesperada “câmera lenta” durante um número musical. A montagem paralela permitiria revelar ações simultâneas, intensificando a tensão entre ambas (vide o destino reservado a Philip Hamilton), além de se concentrar nos momentos de dança, na riqueza das roupas, nas expressões dos talentosos atores. Em outras palavras, a primeira concessão necessária ao cinema seria abandonar a utopia da reprodução idêntica. O espectador em frente à televisão jamais terá a experiência de assistir ao musical diante de seus olhos, com os atores se entregando cena após cena. A gravação deixa de ser teatro a partir do momento em que impede a convivência entre espectador e público, quando desconstrói a unidade do espaço cênico e fragmenta o olhar.

Sem o prazer de cumplicidade teatral, nem as potências do cinema de ficção, resta um instrumento de nostalgia, um registro mais jornalístico e histórico do que propriamente artístico. Pelo menos, enquanto decalque modesto da experiência original, atesta as belíssimas vozes de Renée Elise Golsberry, Phillipa Soo, Anthony Ramos, Chris Jackson, Leslie Odom Jr. e Okierete Onaodowan; o talento natural de Daveed Diggs e Jonathan Groff para a comédia (este último, em composição hilária do Rei George); as potentes letras de Lin-Manuel Miranda entre o hip hop, o rap, o jazz e o pop; a transição harmoniosa entre números, os criativos efeitos de luz. Alguns atores, como Sydney James Harcourt, possuem uma aparição tão boa em papéis minúsculos que despertam curiosidade para vê-los em outras oportunidades. Em última instância, Hamilton reforça a marca do espetáculo e sustenta a popularidade deste. Trata-se de um produto derivado, um reforço de marketing. São como os bonecos e mochilas de super-heróis: eles não substituem os personagens reais, porém se tornam uma representação afetiva. No caso deste filme sobre o teatro sobre a História, seria uma representação da representação, decalque do decalque. Mas deve ser uma experiência deslumbrante assistir ao musical na Broadway.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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