Sinopse
Greice é uma jovem mulher brasileira estudando e trabalhando em Lisboa, Portugal. Num dia de trabalho, ela conhece Afonso, e essa relação vai ser o estopim para uma série de acontecimentos que a levam de volta ao Brasil.
Crítica
“Tudo começou num dia de muito calor em Lisboa...”, afirma ela, de forma tão natural e espontânea que talvez nem tenha percebido que essa é apenas mais uma das tantas mentiras com as quais está acostumada a contar aos outros, desde as mais inocentes até aquelas verdadeiramente problemáticas. Sim, pois a busca por uma forma de dar um fim àquela sensação incômoda provocada pela alta temperatura na capital portuguesa pode ter sido, sim, um ponto de partida, mas não foi, exatamente, o início. Greice, o filme, afinal, exibe em sua primeira cena o preparo de uma caça ao tesouro, brincadeira reservada aos novatos recém-chegados à faculdade onde a protagonista estuda, uma atividade que terá consequências transformadoras em sua vida. Assim, ao menos para os que até esse momento ainda não haviam percebido essa característica definidora da personagem, surge a confirmação de que Leonardo Mouramateus optou por conduzir sua história por meio de uma figura absolutamente não confiável. E acompanhá-la pelos meandros do antes e do depois de cada uma destas ‘verdades alternativas’ que cria para si e para os demais é apenas um dos charmes dessa comédia inquieta e provocadora, um sopro de novidade em um gênero tão facilmente resignado a se confinar em fórmulas pré-estabelecidas e convencionais.
Se a noite de recepção aos calouros teve desdobramentos importantes na vida de Greice, é de se estar atento não tanto ao ocorrido, mas aos motivos que geraram tais mudanças de rumo. A garota deixou o Ceará para ir estudar em Portugal, e é de se imaginar que não esperasse se deparar com um mormaço ainda pior que o do nordeste brasileiro. Ela e uma amiga partem em busca de uma piscina próxima de onde moram. A ideia é aplicar um golpe quase inofensivo. Afinal, as duas, de fato, trabalham para a popular cantora Clea (Isabel Zuáa, em participação mínima, mas marcante), mas nesse ponto a usam como desculpa, como se estivessem em busca de locações para o próximo videoclipe da artista, e assim se apresentam ao dono da única casa na região que possui, em seu jardim, uma atrativa área de lazer. Tudo o que buscam é por uma oportunidade de se refrescarem, mas o envolvimento subsequente daquela que teve a ideia com o dono da residência colocará em debate as convicções morais e éticas da jovem. Pois não tardará até que perceba estar namorando alguém mais disposto a obter vantagens próprias do que ela mesma. Nesse olhar pelo espelho, o retrato percebido não se revela tão atraente. É quando descobre ter chegado o momento de uma reinvenção pessoal.
A relação que surge entre Greice e Afonso, o português que lhe abre a porta de casa e, com isso, termina por lhe mostrar mais do que ela gostaria de ter visto, é tão óbvia e morna que serve como um estimulante contraponto ao fervor e imprevisibilidade que ela enfrentará ao encontrar Enrique, o rapaz que se colocará a sua disposição no hotel em que se hospeda ao voltar para Fortaleza. De recepcionista e faz-tudo, logo o interesse dele se tornará evidente, e esse envolvimento quase ao acaso fornecerá ao conjunto os elementos necessários para que Greice se transfigure também em uma comédia romântica, felizmente distante da previsibilidade e dos vetores redundantes que costumam transitar pelo gênero. Os dois se tornam uma dupla pela qual torcer, mas não como um fim, e, sim, uma possibilidade digna de atenção, ainda que em meio a outros desfechos mais pertinentes. Afinal, a narrativa é sobre ela, e os que estão ao seu redor são não mais do que satélites que existem apenas em função deste sol. Ao se afastarem, o interesse que antes despertaram desaparece.
Não causa espanto afirmar, diante deste cenário, que outro grande acerto é a escolha de Amandyra (vista também na série Da Ponte pra Lá, 2024) para viver a personagem-título. Seu olhar curioso e, ao mesmo tempo, independente, é adequado a essa mulher de espírito forte e respostas rápidas, sempre pronta para escapar das confusões que ela mesma apronta mais pela excelência de sua língua do que por meio de artimanhas complicadas ou potencialmente danosas. Sua Greice é fruto de um país que cansou de sofrer, de lidar com a desilusão e o desamparo, e ao invés de seguir em busca de algo que nem sabe ao certo o valor, voltou-se para aqueles que dela retiraram os privilégios de partida em um protesto pelo que lhe é de direito. Sair de Portugal não lhe é uma opção, e fará de tudo para permanecer na cidade que escolheu para si, mesmo que para tanto tenha que voltar várias casas nesse tabuleiro antes de, enfim, poder registrar qualquer progresso. Se dar conta de que não se trata somente de uma disputa entre certo ou errado terá um custo que apenas a experiência poderá lhe proporcionar. Algumas coisas precisam ser percebidas, e não impostas.
Outros destaques são as presenças do ator e músico Dipas, como Enrique, e de Bruna Pessoa, como Márcia, a prima que acaba envolvida nas histórias contadas por Greice. Os dois, que só aparecem a partir do momento em que a trama se transfere para a capital cearense, colaboram de foram definitiva para que a segunda metade do filme seja mais interessante e reveladora do que a inicial. Enquanto o rapaz conquista pela irreverência e por um sorriso contagiante, a outra carrega em sua revolta uma admiração pela capacidade da amiga em se reinventar a cada tropeço. Pois é isso que Greice, afinal, tem a oferecer: um exemplo de determinação em manter a cabeça erguida, mesmo quando todos os indícios apontam o contrário. E com isso, Leonardo Mouramateus consegue fazer um filme popular e de franco diálogo com o público, sem menosprezar o espectador e muito menos abrir mão de uma estrutura inteligente e capaz de surpreender a cada reviravolta. Afinal, não basta apenas desvendar o mistério por trás da charada: é preciso, mais do que qualquer coisa, entender o que antes estava faltando, pois só assim se poderá ir atrás daquilo que agora se confirma ser essencial.
Filme visto durante o 13o Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2024
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