Crítica

Malandro mesmo é o gato, que já nasce de bigode”, dizia o velho ditado. Também assim deve pensar Gary, um rapaz que habituado a quebrar galhos aqui e ali, buscando apenas levar um dia após o outro. Nas primeiras cenas de Grand Central a diretora e roteirista Rebecca Zlotowski tenta deixar claro o perfil do protagonista, que engana o cobrador do trem para viajar sem passagem. No entanto, ao ter sua carteira batida por um outro pilantra, ele não só consegue dar o troco na mesma medida como acaba, com o outro, formando uma parceria de ocasião. E é assim que terminam na pequena cidade de Rhone, no interior da França, onde o único atrativo é a indústria de energia nuclear. Lá ele encontrará uma oportunidade de trabalho, dando início a uma temporada que mudará para sempre sua trajetória.

Não há muito esforço por parte da realizadora para trazer seus espectadores para dentro do mundo proposto por Grand Central. A realidade aqui é dura, e se aqueles que estão nela inseridos conseguem de alguma forma ou de outra manejar essas dificuldades e ainda assim terminar a rotina com um sorriso no rosto, não será tão fácil assim para os recém chegados – por mais que tenham sido recebidos de braços abertos pelos locais, num comportamento curioso que em nada reflete o debate contra imigrantes tão pertinente na Europa atual. A diferença, no entanto, está no tipo de serviço com o qual estão envolvidos – uma prática que ninguém deseja para si ou para o próximo, e que só suportam aqueles que realmente precisam. Portanto, quando alguém se dispõe a ela, é preciso recebê-lo com entusiasmo: afinal, trata-se da última chance tanto para o candidato à vaga como para a própria empresa, vide a escassez de recursos humanos disponíveis.

Gary, interpretado com competência por um desprendido Tahar Rahim – um das grandes revelações do atual cinema europeu – quer apenas fazer um pé de meia e se mandar o quando antes. Logo ele percebe, porém, que as ameaças de radiação não são apenas teóricas, e o risco de uma contaminação é um medo diário. Esse receio físico e concreto encontra paralelo nas relações que passa a desenvolver, principalmente no caso que começa com a sexy Karole (outro nome em alta, a bela Léa Seydoux), namorada de Denis Ménochet (considerado o ‘Richard Burton francês’ por Quentin Tarantino), um dos colegas mais experientes do rapaz no emprego. Quando ela engravida acidentalmente, os fatos se encaminham para uma resolução que foge do melodrama latino mais comum, porém sem deixar de gerar uma dose de expectativa que será impossível ser atingida por completo.

Por muitos momentos Grand Central lembra o tom de denúncia defendido no marcante Silkwood: O Retrato de uma Coragem (1983), principalmente pela ambientação onde a história se desenvolve, porém sem a mesma intensidade e radicalismo em seu discurso. Cabe à cineasta um viés mais distanciado, como se o drama de seus personagens fosse tão passageiro quanto eles próprios por aquela situação. Ainda que sem maiores atrativos além das boas atuações defendidas por um elenco coeso, tem-se um filme mais fácil de se assistir do que o trabalho anterior de Zlotowski, Belle Épine (2010), também estrelado por Seydoux. Porém, o que este exibia com urgência, o mais recente explora de forma contemplativa, quase como uma observadora incapaz de provocar qualquer tipo de mudança. Um sentimento que só se trai, felizmente, no final de grande impacto, que serve como um chamado e alerta. Mas aí já é tarde demais.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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