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Sinopse

Durante a década de 1960, um grupo de engenheiros americanos é designado pela empresa automobilística Ford para construir um carro de corrida mais rápido que o da, até então campeã, empresa italiana Ferrari. Tudo culmina na corrida do Campeonato Mundial Masculino, que acontece na França em 1966, onde o melhor carro deve vencer.

Crítica

Apesar da evidente excelência técnica e do desempenho superlativo do elenco aqui reunido, há questões narrativas que prejudicam uma melhor fruição de Ford vs Ferrari. Pra começar, veja o título: Ford VERSUS Ferrari. Ou seja, imagina-se que o espectador será confrontado com uma disputa de uma CONTRA a outra. Pois bem, não chega a ser exatamente isso o que acontece. O filme do diretor James Mangold é todo sobre a Ford, e quase nada a respeito da Ferrari. Essa até aparece, na meia hora inicial, e por cerca de uns 15 minutos. No resto do tempo, é apenas uma sombra, um objetivo aparentemente inalcançável, um símbolo a ser derrubado. Mas não mais do que isso. O roteiro assume apenas um ponto de vista, e é a partir dele que a audiência é conduzida. Ao tomar partido, minimiza-se os esforços de um para continuar no topo, ao mesmo tempo em que se enaltece de forma exagerada os movimentos do outro – não por acaso, o norte-americano. E quem aí não está cansado de heróis em azul, vermelho e branco?

Outro problema é o próprio argumento. Logo no começo, o presidente da Ford Motors, Henry Ford II (Tracy Letts, que tem ao menos uma cena memorável), invade a área de produção da própria fábrica para discursar diante dos seus operários sobre a crise na indústria automobilística e os desafios que a empresa está enfrentando, com queda nas vendas e falta de sintonia com o público. Pois bem, esse dilema é rapidamente deixado de lado – ou, ao menos, bastante minimizado – diante da proposta de um dos seus executivos: e se a Ford entrasse no campo da corrida de automóveis? Com isso, acreditam, a imagem da companhia seria modernizada, pois falaria diretamente com consumidores mais jovens e antenados. Mas e todas as demais fatias de clientes? Ninguém parece se importar com eles. Como se vê, Ford vs Ferrari até nasce como uma história de bastidores empresariais, mas como essa temática tem todos os elementos para matar qualquer um de tédio, tal pressuposto rapidamente se torna irrelevante, optando-se por centrar suas atenções na história de dois homens: aquele que pode construir o carro mais rápido do mundo, e o único capaz de dirigir tal máquina.

O primeiro é Carroll Shelby (Matt Damon, repetindo-se em trejeitos e posturas administrativas, como visto em Pequena Grande Vida, 2017, ou Compramos um Zoológico, 2011, por exemplo), um ex-corredor que agora trabalha revendendo carros. Ele é procurado por ter sido o único piloto norte-americano a já ter vencido a dura prova das 24 horas de Le Mans, na França. Ao convocá-lo, vem junto também Ken Miles (Christian Bale, em mais uma impressionante transformação física, muitos quilos distante do Dick Cheney de Vice, 2018, mostrando novamente o quanto ele depende, enquanto intérprete, de uma construção externa para compor seus personagens), um motorista temperamental, difícil de lidar pessoalmente, mas com forte desempenho nas pistas. Ele é a pessoa certa para estar atrás do volante, mas a errada para levantar a taça da vitória. Conciliar esses dois lados será tarefa não apenas do seu parceiro, mas também motivo de uma forte batalha a ser travada com os demais diretores da Ford (em especial, com o burocrata interpretado por Josh Lucas, resignando-se aos clichês corporativos do gênero).

Com os italianos da Ferrari sendo apresentados quase como mafiosos (olha o estereótipo gritando alto) e as motivações financeiras da Ford que deram início a todo esse debate relegadas a um segundo plano, resta apenas o embate entre criatividade e burocracia, rebeldia contra trabalho de equipe. Miles é a figura melhor construída, muito graças ao seu envolvimento familiar, com a esposa (Caitriona Balfe, dona de uma presença hipnotizante) e o filho (Noah Jupe, de Um Lugar Silencioso, 2018, um talento a ser observado). No entanto, ele serve apenas para oferecer explosões nervosas e deixar em evidência uma falta de controle pessoal – algo que, evidentemente, não é nada ‘vendável’. Por outro lado, o filme começa e termina acompanhando os movimentos de Shelby, aquele que pode, enfim, fazer diferença. Mesmo assim, a direção não lhe dá a devida atenção: nada sabemos a seu respeito, além de uma breve consulta médica no começo da trama. Ele serve apenas para segurar as pontas, de um lado ou de outro, e buscar o caminho do meio na maior parte das vezes. Essa irregularidade narrativa começa a se demonstrar aos poucos, chegando até a eclipsar méritos inegáveis da produção.

Entre estes, é claro, estão em sua maioria concentrados nas corridas de automóveis. Se não chega ao nível de excelência de Rush: No Limite da Emoção (2013), ainda são bastante excitantes, muito devido ao comprometimento de Bale em realmente vivenciar os altos e baixos de cada rota ou estrada, assim como Damon oferece um contraponto adequado, ao lidar com os embates dos bastidores. Ford vs Ferrari poderia ser um grande filme, caso entregasse tudo o que promete. Elementos para tanto, possui de sobra. No entanto, opta por caminhos mais fáceis e simplistas, contentando-se em reproduzir o ego do indivíduo, frente às possibilidades de ganho que o coletivo teria a oferecer. Ousado no que lhe já é esperado e absolutamente controlado em todo o resto, ainda peca em sua excessiva duração, estendendo-se em discursos e dramas paralelos que mais distraem do que acrescentam ao conjunto. Vale como curiosidade, é certo, mas não muito mais do que isso.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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