Crítica

O cinema do gaúcho, radicado em São Paulo, Cristiano Burlan não é para qualquer tipo de espectador. É necessário alguém já iniciado, preparado para experiências estéticas e visuais arrojadas e inconformadas com os parâmetros mais tradicionais, com investigações de linguagem e referências que fogem da obviedade. Foi assim com o documentário Mataram Meu Irmão (2013), premiado no É Tudo Verdade, ou com sua versão pop-urbana de Hamlet (2014), exibida há pouco em alguns cinemas mais corajosos. E o mesmo encontramos em Fome, seu mais recente trabalho. Dessa vez, o cineasta retoma duas características do longa anterior: a fotografia em preto e branco e a parceira com Jean-Claude Bernardet, crítico e pensador sobre o cinema nacional que nos últimos anos tem abandonado seu perfil intelectual para investir em uma improvável carreira como ator. E o resultado, ainda que se apresente mais acessível, levanta e provoca tantos questionamentos quanto seria de se esperar de um trabalho resultante destes dois nomes.

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Durante os quinze minutos iniciais de Fome acompanhamos um pouco da rotina de um mendigo, apelidado de ‘Francês’ por aqueles que o conhecem, que passa seus dias empurrando seu carrinho de supermercado com todos os seus pertences pelas ruas de São Paulo. A cidade impressa pelos tons de cinza se apresenta bela e opressora, como se fosse necessário abrir mão de tudo para, enfim, conquistar a liberdade. Mais ou menos a teoria defendida pela protagonista, que irá expô-la didaticamente ao conversar com a jovem estudante universitária que decide se debruçar sobre a vida dos sem teto. Movida por uma indagação de sala de aula, ela sai em busca de explicações que justifiquem como uma pessoa pode perder tudo a ponto de ficar com nada. Mas ao se deparar com essa figura única, o que descobre é que esta condição pode ser uma decisão, e não um castigo. E esta inversão de expectativas lhe faz rever seus próprios conceitos.

Jean-Claude Bernardet possui uma presença tão forte, por tudo que já fez, disse e escreveu, que qualquer um que o conheça minimamente terá dificuldade de vê-lo em cena como personagem – até porque, em todos os filmes que tem aparecido nos últimos tempos, como O Homem das Multidões (2013) ou Periscópio (2013), é basicamente a mesma persona que encontramos. Nunca, no entanto, ele esteve tão exposto quanto em Fome. Seu mendigo tem sotaque europeu e, como descobrimos no decorrer da história, foi professor de cinema. Era uma vida de ascensão neste meio profissional, até o ponto em que se deu conta que melhor do que seguir propagando verdades absolutas seria contradizê-las, até rechaçá-las, levando-o a viver à margem delas. A passagem em que se depara com um antigo aluno é exemplar neste sentido. Quem está ali, figura pública ou criação fictícia? A dúvida percorre todo o discurso. O certo é que aqueles que o desconhecem por completo deverão ter uma outra experiência diante deste filme. Mas será que estes, tão alheios à uma temática e proposta como esta, se interessarão por este resultado?

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Burlan persegue durante os 90 minutos de Fome uma necessidade visual – reforçada pelos belos planos-sequência e uma fotografia delicada e detalhada, que reflete um prazer mais plástico do que pulsante. Por outro lado, tal opção enfraquece o questionamento original, sobre a realidade daqueles que nada têm e o que é ser bem sucedido hoje, portanto. O homem dança sobre um duto de ar como Marylin Monroe fez há mais de sessenta anos, mas qual o contexto por trás da imagem? Sua ânsia não se acaba com um prato de comida oferecido com condescendência – a caridade como forma de repulsa – mas teria ela fim? Afinal, o próprio afirma que, ao invés de fome, tudo o que sente é sono. E esta mesma apatia acaba refletida na tela, em um filme repleto de boas ideias, mas que paga um preço alto pela ousadia vã que tenta propagar.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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