Crítica


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Onde Assistir

Sinopse

João trabalha como entregador de comida por aplicativo no centro do Rio de Janeiro. Enquanto sonha em trocar a bicicleta por uma motocicleta, enfrenta a precariedade do serviço e os clientes mal educados.

Crítica

Fantasma Neon (2021) surge do encontro inesperado entre uma realidade dura – aquela dos entregadores de comida por aplicativo, ganhando pouco e correndo riscos no trânsito – e outra, fabular e leve, dos musicais, onde as pessoas subitamente cantam e dançam no meio da rua. O diretor Leonardo Martinelli sempre possuiu o gosto pela ludicidade próxima da comédia, culminando neste curta-metragem de aspecto doce, apesar do amargor de seu tema. O discurso aproxima o naturalismo documental dos depoimentos de entregadores com declamações fantasiosas de um rapaz a respeito de da tarefa árdua e sem reconhecimento. Mencionando familiares com Covid-19 e a necessidade de se arriscar em plena pandemia para garantir a sobrevivência, torna-se uma obra extremamente atual, refletindo a precarização do mercado de trabalho. O musical parecia uma escolha improvável para discutir questões urgentes, ainda em andamento – assistir a narrativas sobre a pandemia, em plena pandemia, produz um efeito amargo, como se a ficção nos jogasse na cara a crise que ainda não superamos. No entanto, o autor encara o desafio de imaginar cenas de dança e canto no centro do Rio de Janeiro, com bailarinos se apresentando enquanto mantêm as tradicionais mochilas quadradas nas costas. A premissa poderia se tornar ridícula nas mãos de outro autor, mas o filme jamais perde o foco no discurso humanista.

A montagem tem pressa de revelar o caráter musical, desde a primeira cena. Talvez por se tratar de um curta-metragem, o diretor não espera para introduzir a magia aos poucos, nem para desenvolvê-la progressivamente: as sequências musicais, intercaladas com encenações tradicionais de entregadores esperando por pizzas e atendendo clientes mal-educados, possuem teor semelhante do início ao fim. Quando os protagonistas Dennis Pinheiro e Silvero Pereira levam a dança ao Teatro Municipal, a coreografia simples (priorizando os rostos aos corpos, infelizmente) repete o discurso cantado nas ruas do centro, apesar da variação de estilos entre o clássico, o contemporâneo, o passinho e o hip hop. A iniciativa surpreende mais enquanto conceito do que execução: uma vez exposto o procedimento do parêntese fantástico irrompendo no real, ele traz poucas surpresas. Os números coreografados aproveitam uma fração do potencial dos dançarinos, de suas vozes e do estranhamento decorrente da mochila nas costas. Os personagens interagem de maneira limitada com as ruas, transformadas em cenários quase teatrais, a exemplo de fundos desenhados ou projetados digitalmente. Nas letras, apontam a desigualdade social, a desesperança quanto ao futuro, a ironia de carregarem comida enquanto têm fome. “Não tem Brasil pra você”, alerta um dos versos. “O que eu sei é que nem de neon eles enxergam a gente”, comenta um diálogo.

Talvez este elemento provoque o maior incômodo: a impressão de que, por trás da curiosa representação destes profissionais, exista uma constatação excessivamente simples do contexto político e econômico. O roteiro evita investigar as causas do fenômeno, o momento em que surgiu, suas diferenças geográficas ou raciais, as possíveis maneiras de superá-lo ou contorná-lo, a consequência na vida privada dos personagens, o emprego que tinham antes. A mera detecção do problema possui um teor conformista: os entregadores indistintos, sem subjetividade nem particularidades, se restringem à lamentação desta realidade. Depois de um acidente, o herói se levanta e segue viagem: “Tenho que terminar a meta do dia”. O único cliente em cena constitui uma caricatura do tipo grosseiro e elitista, culpando o entregador pela falta de um molho, e sugerindo que o rapaz tenha roubado o item. O maniqueísmo acentua a visão superficial acerca de uma relação de forças específica do Brasil contemporâneo. Exceto pelas menções à Covid-19, resta pouco da vida concreta dessas pessoas. Como são suas casas, seus amores, seus estudos, seus sonhos profissionais? Quando os dois amigos se encontram, eles se comunicam em diálogos ensaiados, explicativos – ambos se limitam a funções, a exemplos de causa.

Fantasma Neon pode ser lido enquanto projeto de urgência, ousando discutir um processo em andamento, ou seja, digerir uma tragédia enquanto ela ocupa o país. Seria difícil adotar o recuo necessário à reflexão, e talvez diante deste obstáculo, o autor dispensa a análise social. O projeto possui coerência dentro do formato do curta-metragem, adaptando suas ambições estéticas e discursivas ao escopo da obra – talvez fosse igualmente discutível investir numa digressão sociológica ambiciosa demais. Enquanto sintoma, a obra sublinha tanto as potencialidades quanto o esgotamento do neon como recurso lúdico e queer (a história alude à homoafetividade). Além disso, comprova o valor e os obstáculos de musicais sobre realidades adversas e não romantizadas – vale pensar em Sinfonia da Necrópole (2014), bem resolvido em música e coreografias. A fantasia permitiria inúmeras metáforas a respeito da desigualdade, do racismo e da exploração, além de ilusões criadas pela montagem e pelos efeitos visuais, da ironia pelos enquadramentos, pela profundidade de campo e pelo espaço em off. Em consequência, a abordagem descritiva resulta limitada. Ressalvas à parte, Dennis Pinheiro e Silvero Pereira correspondem às demandas da direção (é impressionante a capacidade deste último em se camuflar nos personagens), enquanto a montagem promove um ritmo fluido, sem tempos mortos nem acelerações. A proposta evita riscos maiores, porém cumpre os objetivos a que se propõe.

Filme visto online no Festival Internacional de Locarno, em agosto de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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