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Sinopse

Em um Estado totalitário em um futuro próximo, os "bombeiros" têm como função principal queimar qualquer tipo de material impresso, pois foi convencionado que literatura um propagador da infelicidade. Mas Montag, um bombeiro, começa a questionar tal linha de raciocínio quando vê uma mulher preferir ser queimada com sua vasta biblioteca ao invés de permanecer viva.

Crítica

Ray Bradbury escreveu um de seus melhores livros, um verdadeiro clássico da ficção científica, em 1953, intitulado Fahrenreit 451. Apontando sua obra para um futuro distópico, no qual as pessoas são proibidas de possuir ou ler livros, Bradbury fez um interessante cotejo com o momento em que vivia os Estados Unidos, a caça às bruxas do senador Joseph McCarthy. Apenas 13 anos depois, o cineasta francês François Truffaut resolveu levar sua visão da obra do autor norte-americano para os cinemas. Para tanto, filmou pela primeira vez em cores e abandonou sua língua pátria, escolhendo o inglês como idioma de sua obra. Ainda que tenha momentos interessantes e cenas impactantes, o Fahrenreit 451 de Truffaut não consegue atingir as notas profundas de seu irmão literário, abandonando quase que completamente as raízes de ficção científica da história e transformando a trama em um romance pouco envolvente.

Na trama, assinada pelo diretor ao lado de Jean-Louis Richard, os bombeiros têm uma tarefa muito diferente do que estamos acostumados. Em vez de apagar incêndios, eles são responsáveis por inicia-los. Ou melhor, por colocar fogo em qualquer tipo de material de leitura, com predileção por livros. Neste cenário conhecemos Montag (Oskar Werner), um bombeiro que faz seu trabalho de forma ímpar, muito próximo de uma promoção. Sua esposa, Linda (Julie Christie), é fútil, autocentrada e vive em um mundo próprio, assistindo televisão e fazendo encontros com suas amigas. Quando Montag conhece a bela Clarisse (Christie, em papel duplo), uma professora que mora perto de sua casa, uma centelha de curiosidade nasce a respeito dos tão odiados livros. Ele começa a esconder algumas obras em sua casa, lendo-as em seus horários de folga. Este interesse na literatura mudará para sempre a vida de Montag.

Voltando a trabalhar com Oskar Werner depois de Jules e Jim: Uma Mulher para Dois (1962), François Truffaut escolheu seu antigo colaborador almejando uma atuação calorosa – e recebeu o contrário disto. Um dos problemas de Fahrenreit 451 é sua dupla principal, inclusive. Werner não consegue fazer o espectador se relacionar com a frieza de seu jeito, com sua atitude clínica, com sua maneira seca de soltar o texto. Por outro lado, temos Julie Christie em papel duplo – e um tanto desnecessário – não conseguindo dar a diferenciação que os dois personagens tanto precisavam. Terence Stamp era a primeira escolha de Truffaut para o papel e só não aceitou o trabalho por causa de seu relacionamento com Christie ter azedado no passado. Por falar em azedume, Werner e Truffaut se desentenderam nos sets e nunca mais trabalharam juntos depois deste filme. Reza a lenda que o ator teria cortado o cabelo antes de gravar as cenas finais do longa apenas para provocar um erro de continuidade e demonstrar seu desprezo para com Truffaut. Atitude bastante antiprofissional.

Se não bastasse uma dupla principal mal escalada, Truffaut parece ter tido problemas em dirigir uma obra em inglês. Como ele não falava o idioma, o diretor não consegue transmitir o que gostaria através das palavras de seus atores. Por essas e outras, Fahrenreit 451 peca tanto em seus diálogos pouco inspirados e displicentemente entregues pelo elenco. Por outro lado, visualmente, o longa-metragem apresenta cenas de impacto e se salva muitas vezes pelo olho do diretor, que ainda que não estivesse em seu ambiente natural – a ficção científica nunca foi algo do gosto de Truffaut – conseguiu construir momentos ímpares.

A cena memorável de Fahrenreit 451 é, sem sombra de dúvidas, a invasão da casa de uma senhora leitora, que não aceita se livrar dos livros e acaba pegando fogo junto deles. Truffaut utiliza da saturação da cor vermelha para criar um verdadeiro inferno naquela sala de estar cheia de livros espalhados. Inteligente, o diretor reutiliza aquele cenário para uma sequência onírica, na qual Montag troca a identidade da senhora pela jovem Clarisse. Uma pena que por causa das limitações da época não tenha sido possível construir um futuro verossímil. Tudo parece anos 60 demais, sem que possamos ser transportados para aquela visão pessimista do porvir que Ray Bradbury tão eloquentemente escreveu em seu livro. A direção de arte acerta em momentos pontuais, como a televisão na parede (algo tão comum nos dias atuais e previsto por Bradbury no romance) e no carro de bombeiros.

Outro ponto a ser destacado positivamente é a trilha sonora precisa do mestre Bernard Herrmann. Se em alguns momentos Truffaut não consegue traduzir a atmosfera de paranoia tão presente na versão literária da história, a música do compositor norte-americano contrabalança esta falha, dando a urgência que Fahrenreit 451 tanto necessitava.

O terceiro ato é a melhor parte deste trabalho de François Truffaut, que consegue finalmente tomar a obra de Bradbury para si. Os desdobramentos da história, ainda que difiram do livro, são boas inclusões e o final, quase poético, agradou até o autor da trama original.

A experiência de filmar em inglês foi tão angustiante para o cineasta francês que ele nunca mais faria outro longa-metragem naquele idioma. Existe uma aura cult em cima de Fahrenreit 451, com alguns cineastas – como Scorsese – apontando ser o caso de uma obra subestimada. À época, o trabalho de Truffaut não foi tão bem resenhado, mas ganhou adeptos com o passar do tempo. Talvez pelo inusitado de observar um dos pais da nouvelle vague tentar embarcar em um sci-fi. Os momentos em que o filme funciona, ao menos, valem os 107 minutos investidos. Mas com os talentos envolvidos e com o excelente material de origem, era para se esperar muito mais.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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