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Sinopse

Berlim, 1931. Um meio entre sublocações e o submundo, onde os bordéis são estúdios de artistas, os nazistas gritam abusos nas ruas e Babelsberg sonha em produzir “cinema psicológico”. A vida está crescendo, a sociedade está fermentando e corroendo. Enquanto ainda tem emprego, Jakob Fabian escreve textos publicitários durante o dia e frequenta os estabelecimentos mais bizarros da cidade com Stephan Labude à noite.

Crítica

Para o diretor Dominik Graf, 1931 constituiu um período de caos econômico, moral e político. Hitler ascendia ao poder, Wall Street havia quebrado dois anos antes, e a recessão afetava toda a Europa. Os cabarés viviam seu auge, talvez por proporcionarem uma fuga à realidade. Em Berlim, a vida noturna era tão intensa quanto a pauperização. Deste modo, a representação deste ano recorre a uma elaboração intensa, veloz e caleidoscópica de imagens. A primeira hora de Fabian: O Mundo está Acabando (2021) oferece cenas desconexas, incluindo diversos planos com duração de um segundo apenas. As telas se dividem, aumentam e diminuem, as cores se transformam, a granulação se altera. Há zooms violentos, imagens de arquivo, encenações teatrais como num palco, trechos de vídeo amador (seria uma captação em telefone celular?), imagens ultra anguladas, quebra de quarta parede, além de dois narradores diferentes. Desconcentre-se durante cinco segundos e se encontrará diante de novos personagens, em espaço desconectado do anterior. Durante o terço inicial, as imagens se atropelam ao invés de se sucederem. O diretor assume com vigor o seu mundo barroco e farsesco.

Aos poucos, para o alívio de nossas retinas confusas, a história se acalma. A janela se atém à proporção consagrada pela televisão (1 : 1.66) e a câmera na mão preserva apenas as rápidas guinadas de ângulo e enquadramento. No entanto, passamos a conhecer Jakob Fabian (Tom Schilling), herói desta longa história. Talvez a trajetória do personagem pudesse ser descrita em poucas linhas: o escritor talentoso, porém mal inserido na indústria publicitária, perde o emprego e se vê perdido na cidade, enquanto tenta manter o amor da ambiciosa atriz Cornelia (Saskia Rosendahl). É curioso que o filme, adaptado do romance de Erich Kästner, escolha como protagonista um sujeito comum, nem bonito, nem feio; nem particularmente talentoso, nem fracassado; nem ousado, nem profundamente tímido. Fabian mistura-se à multidão, tornando-se tão esquecível que diversos colegas de fato o esquecem. Schilling, ator de porte mediano, que vem interpretado sujeitos comuns em diversas produções alemãs, encarna o personagem sem esforços. Pelo texto e pela atuação, Fabian representa um sujeito complexo: ele é capaz de um ato de ousadia, que jamais se repete a ponto de convertê-lo num tipo corajoso. Ele se acomoda a alguns fracassos, porém sem atingir o patamar de um homem aborrecido ou derrotista. O escritor foge do protagonista exemplar a quem ocorrem reviravoltas extraordinárias.

Ainda que não se conheça o material que lhe serve de base, é evidente que se trata de uma adaptação literária. Fabian: O Mundo está Acabando constitui um destes casos em que a estrutura se assemelha àquela de um romance, ao invés de um roteiro cinematográfico. Há personagens em excesso, saltos temporais a perder de vista, e descrições de sentimentos fornecidas pelos dois narradores em off (um homem e uma mulher) para suprir aquilo que a imagem não representa por si própria. Apoia-se na estranha estrutura do “e então”: o escritor perde o emprego, e então conhece Cornelia, e então tem um encontro com o amigo Labude, e então perde a namorada, e então... As ações se sucedem sem necessariamente se comunicar, para além do fato de acontecerem à mesma pessoa, na mesma linha do tempo. Na literatura, passagens deste tipo ajudam a construir um repertório de emoções e sentimentos fundamentais à compreensão dos personagens. Ao cinema, cabe encontrar metáforas capazes de representar tamanho turbilhão de ideias. Passada a cacofonia estética inicial, Graf limita-se a ilustrar passagens do livro, consagrando-se a capítulos que estima indispensáveis numa adaptação. O respeito pelo romance clássico o impede de eliminar ou transformar sequências, produzindo uma narrativa um tanto inchada.

Além disso, convém relançar a pergunta fundamental às adaptações literárias: como o cinema pode dialogar não apenas com a trama, mas com o estilo do autor do romance? Qual equivalência existiria com o ritmo das frases e o linguajar adotado? Que recursos cinematográficos corresponderiam à ausência de pontuações de Saramago ou à ironia mordaz de Kafka? As piores adaptações são aquelas que encaram o livro como uma história a ser ilustrada. O filme alemão, felizmente, possui ambições autorais próprias, fazendo acenos à estética do cinema mudo, à comédia pastelão, ao teatro de variedades e até ao expressionismo. Nota-se uma reflexão quanto à temporalidade: ao invés de gastar milhões de euros em roupas de cenários “de época”, Graf prefere utilizar espaços teatrais para embutir signos que remetem ao cinema dos anos 1930. A escolha é astuciosa, permitindo fugir ao anacronismo: esta é certamente uma obra do século XXI, ainda que represente o século XX. No entanto, o diretor poderia ter efetuado escolhas estéticas para eliminar os traços mais claramente literários, como a narração em off e a estrutura em blocos (enquanto assistimos a um personagem, nunca sabemos o que os demais estão fazendo em paralelo). O filme efetua um esforço de atualização na imagem, porém não na estrutura.

Ao final, Fabian: O Mundo está Acabando resulta numa produção tão competente quanto ambiciosa. Seria curioso folhear o roteiro gigantesco, com mais de uma centena de cenas e praticamente o mesmo número de cenários. O respeito pela grandiosidade da obra de Kästner torna-se palpável a cada minuto. Este seria, ironicamente, o aspecto prejudicial do filme: o caráter solene, incapaz de fazer alterações e conceber uma criação mais livre. O diálogo entre duas artes constitui um dilema fascinante enquanto objeto de estudo: afinal, o cinema só pode ganhar a partir do momento em que a literatura estiver disposta a ceder. Na maioria dos casos, os diretores pendem excessivamente para os recursos literários – o respeito se converte no medo de uma autoridade. Ora, apenas a traição (no melhor sentido do termo) pode propiciar uma boa versão, porque a transposição de uma arte à outra constitui um embate, ao invés de um encontro. O principal conflito das transposições decorre não das atuações de Fabian, da distância entre décadas (1930 contra 2020) ou da capacidade de ilustrar alguma passagem icônica, e sim das questões de linguagem. Como o cinema encontraria recursos à altura do storytelling literário, utilizando apenas som, luz, enquadramento, profundidade de campo, textura de imagem, montagem, metáforas? Graf oferece uma obra mais extravagante do que bem resolvida em termos conceituais. Mesmo assim, serve enquanto ponto de partida para se pensar a delicada conversa entre arte escrita e arte visual.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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