Crítica


6

Leitores


2 votos 8

Onde Assistir

Sinopse

Ex-humanos que se alimentam de sensações fugazes descobrem o cinema num futuro distópico.

Crítica

Ex-Humanos se passa num mundo distópico. Para evidenciar isso, a direção de arte busca na associação com o lixo uma natureza decadente. O Humano (Claudio Marino) transita nas áreas externas coberto dos pés à cabeça, num figurino semelhante ao do povo da areia da saga Star Wars. Os farrapos que o cobrem se tornam uma espécie de segunda pele. Ele vasculha os escombros da sociedade pós-informatizada – os dejetos são basicamente computadores quebrados – para encontrar algo que em princípio o espectador não sabe do que se trata. No entanto, a textura do filme não é somente essa dos equipamentos rejeitados, obsoletos, mas também o enferrujado e abrasivo, características desse abominável mundo novo. A associação de imagens que contempla trechos de filmagens antigas contém raros diálogos. Aos poucos, sobretudo com a entrada em cena dos demais, percebemos que persiste uma busca por valiosos fragmentos de lembranças. A memória surge como cinema, mais precisamente fotogramas familiares que resgatam episódios de passados remotos.

Há mais dois personagens no filme de Mariana Porto. A Humana (Vera Valdez) é uma espécie de bruxa, ao que tudo indica um tipo de alquimista que processa imagens fotográficas à classe dominante, que se alimenta desse ontem remanufaturado. Já o Ex-Humano (Arthur Schmidt) é um tipo longilíneo, careca e impositivo que fica sorvendo rememorações alheias numa sala de luz estourada. A classificação dele como algo que foi humano não tem contextualização no curta, ou seja, não se sabe qual estágio de involução essa aparente elite experimenta ou quais são os contornos dessa sociedade. Pelas frestas de uma ação bem mais orientada pela costura entre as imagens e o ótimo desenho de som é possível conjecturar que as coisas basicamente mudaram para permanecer iguais. Portanto, o dominante é visto como alguém agressivo, enquanto o dominado é quem labuta numa realidade literalmente tóxica (vide o Humano ofegante e a necessidade da máscara). O âmbito sensorial prevalece sobre o seu equivalente informativo. Idas e vidas soam como reiterações cotidianas.

Ex-Humanos investe na repetição como procedimento para determinar, em poucos gestos e ainda menos palavras, de qual sociedade estamos falando. Porém, Mariana Porto não cria teses por meio de subtextos ou oferece um panorama moralista dessa coletividade que vive seu crepúsculo como castigo pela própria conduta. A filiação à ideia da distopia se encarrega imediatamente disso. A cineasta brinca com o relevo e a importância das imagens, lançando mão de recursos como a degradação do papel fotográfico vista de perto, a película queimando em contato com o fogo, o aspecto antigo dos trechos que parecem registros pessoais. Estamos diante de um filme que aposta na exacerbação por meio de acúmulos. Suportes distintos se atravessam velozmente, sons se sobrepõem com propósito dramático definido. Por um lado, a aglomeração serve para dar relevo à sociedade futurística que flerta com a destruição. Por outro, desenha um ambiente deliberadamente incômodo em que não temos tempo e tampouco recursos para ficar confortáveis diante de tudo o que é visto.

Sons e imagens se complementam em Ex-Humanos. Quando a paisagem não dá conta de aludir a esse cenário pós-apocalíptico, os sons encavalados sobre o ofegar do Humano em meio aos escombros se encarregam de completar lacunas. Desse modo, pouco importa a trama propriamente dita, senão como subterfúgio para conferir lógica ao que verdadeiramente interessa: essa colisão de vislumbres e barulhos. Ao que parece, Mariana corre um risco calculado ao reduzir o enredo até torna-lo obscuro, decifrável apenas até o ponto de não radicalizar a sua experimentação. Nem sempre essa repetição deliberada resulta no efeito desejado, por vezes ocasionando uma simples reafirmação que tende a gerar rápidos esgotamentos. No entanto, o filme é bem-sucedido em fisgar a atenção por suscitar perguntas sem respostas. Quem é o sujeito opressor e porque ele se deleita com as imagens do passado? Como se dá a integração entre sons, imagens e fluídos (a urina) nesse mundo? E, convenhamos, a ideia do cinema como droga (alucinógeno?) viciante é excelente.

Filme visto no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *