Crítica
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Sinopse
Um casal precisa lidar com as consequências de uma adoção que não dá certo.
Crítica
O cineasta chileno Pablo Larraín parece cada vez mais empenhado nas pesquisas formais. Em Neruda (2016), agregou dispositivos incomuns ao cinema convencional para dar à investigação dos fatos uma hibridez lírica. Em Jackie (2016), fez da mimese elemento central no esquadrinhamento da celebridade igualmente real. Em No (2012), primou por uma estética bastante especifica, sobretudo para, de novo defronte à realidade, mostrar de que maneiras o audiovisual contribui ao registro histórico de uma época. Em Ema, seu mais recente filme, a dinâmica da dança se encarrega de ditar o caráter performático da narrativa, algo que confere às questões íntimas uma natureza bem próxima ao transcendente. Ema (Mariana Di Girolamo) é uma dançarina. Sua inquietude surge tanto no estabelecimento dos elos afetivos quanto nas ocasiões de expressão puramente física. Esse corpo é análogo ao astro-rei no fundo da apresentação, cujas tempestades solares funcionam como metáforas dos rompantes de aparente insensatez que tornam essa protagonista volátil, mas muito magnética.
No começo há a vergonha, pois Ema e seu marido, Gastón (Gael García Bernal), buscam se recuperar pública e pessoalmente do episódio passível de expor suas falhas. Depois de adotar um menino colombiano – somente citado em boa parte do enredo –, de comum acordo o devolvem à orfandade por não conseguirem lidar com as demandas infantis dele. Ambos tentam se justificar, conferindo ares de normalidade e sensatez à sua atitude controversa. O menino ateou fogo no rosto da tia, confinou um gato da geladeira até que o mesmo fosse congelado, ou seja, apresentou comportamentos avessos ao que os artistas esperavam de um herdeiro. Todavia, Larraín habilmente vai desmistificando essa dinâmica superficialmente reativa. A criança não foi defenestrada do lar em constante ebulição necessariamente por ter feito atrocidades, pois há terreno para questionarmos o tipo de condições oferecidas ao pequeno para sentir-se amado. Em meio à construção estética rigorosa, cheia de luzes artificiais e enquadramentos simétricos, o choque de fragmentos expõe as fissuras.
Lido ao contrário, o nome da personagem-título é um imperativo sintomático. AME. Larraín entrega, assim, talvez de um jeito óbvio, resposta aos questionamentos nucleares desse drama sinestésico com esqueleto de filme musical. É exatamente aí que reside outro ponto fundamental desta pesquisa formal . Ema possui claramente um arcabouço decalcado do gênero supracitado. Várias esquetes formam um painel cumulativo. Ao invés de primar por um andamento fluído, "apagando" as transições, o cineasta chileno demarca deliberadamente todas elas, naturalizando um processo de atração prioritariamente tonal. É efetivamente como a metodologia de costura dos números musicais, porém sem os acompanhamentos melodiosos diretos, com pontuais passagens embaladas pelas canções diégéticas. Grandes temas perpassam esse bailado em que igualmente há espaço ao poder erótico da arte, à sua natural potência como mantenedora de um sumo vital.
O relacionamento entre Ema e Gastón comporta de rusgas domésticas a discussões amplas acerca de fertilidade, maternidade, feminilidade e masculinidade. As brigas expõem certos lugares-comuns, vide a tentativa de minar a confiança do homem ao expor sua incapacidade de reprodução. De modo similar, ele busca agredi-la ao recorrer a chavões machistas utilizados para enfraquecer a autoestima da mulher. Até a convenção que diz respeito aos “artistas intensos” é utilizada a favor dessa construção que esbarra calculadamente na caricatura para discursar conceitualmente sobre arquétipos e estereótipos. Tanto, que, prestes a sair do hospital, a irmã queimada demonstra preocupação com a verossimilhança da peruca. Em outra chave, mas dentro dessa ideia de atender às aparências, o casal padece por ficar tachado socialmente de irresponsável ao não conseguir arcar com a própria incapacidade de doar-se diante de tantas dificuldades.
A interpretação visceral de Mariana Di Girolamo confere a Ema uma aura, ao mesmo tempo, de instabilidade, fragilidade e potência. No percurso performático idealizado por Pablo Larraín, com direito a imagens retóricas, carregadas de um simbolismo forte – como o semáforo em chamas, por exemplo –, ela representa também o preço a ser pago no percurso à obtenção da liberdade, sendo a totalidade desta uma utopia. Empenhada em (re)assumir o papel de mãe, a protagonista lança mão de um estratagema regado a sexo e sedução. Nesse momento, Ema ganha cenas tórridas que, assim como boa parte das demais, inclusive as de naturezas distintas, são cuidadosamente coreografadas para soarem belas. Corporalidade e carnalidade viram combustíveis. Ainda sobre estereótipos, o Chile apresentado não é despersonalizado ao ponto de indeterminar-se, mas estilizado nessa proposta de filtrar personagens e circunstâncias, aqui compreendidos como insumos da realidade, por um prisma que ora confronta, ora enfatiza as subjetividades em rota de colisão.
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