Sinopse
Crítica
Antes de qualquer outra coisa, é preciso destacar que Donzela faz parte do que parece ser um plano da atriz Millie Bobby Brown visando afirmação em Hollywood para além de Stranger Things (2016-) – programa que a tornou candidata a estrela de sua geração. Somada aos dois longas-metragens em que a britânica interpreta Enola Holmes, irmã caçula de Sherlock Holmes, esta aventura medieval recentemente lançada pela Netflix expõe um projeto de carreira que inclui protagonizar e assinar as obras como produtora executiva. Desse modo, Millie garante controle, assim ampliando a sua estatura numa lógica industrial. Feita a introdução para definir esse importante contexto extrafílmico, vamos à trama. Nobre de um reino inóspito com severos contratempos econômicos, Elodie (Millie Bobby Brown) é convocada a se tornar princesa do próspero império de Aurora, terra em tudo diferente da sua. Verdejante, ensolarado e com edificações suntuosas, o novo lar representa para ela algo dúbio: por um lado, a possibilidade de viver melhor numa localidade agradável; por outro, a falta de autonomia feminina numa lógica tradicional em que o casamento é frequentemente utilizado como mecanismo diplomático para construir alianças e concentrar poder. Estamos diante de uma aventura infantojuvenil na qual a verossimilhança e a densidade emocional são colocadas em segundo plano, senão em terceiro.
Dentro das suas limitações como exemplar de aventura medieval em quase tudo derivativa, Donzela arma um cenário com ideias e posições interessantes. Elodie é a mulher de pouca autonomia que renuncia à liberdade individual em prol de um bem maior: a sobrevivência de seu povo. Quebradas as expectativas de se deparar com um pretendente escroto que também está cumprindo os protocolos políticos do enlace, ela se aproxima do herdeiro sensível com interesses em comum. Henry (Nick Robinson) fala em viagens exploratórias e retira um pouco o peso da obrigação do novo relacionamento que começa com ambos escapando numa cavalgada emancipatória pelo campo. Tudo está correndo bem (até demais). Logo, a nossa experiência cinematográfica prescreve cautela diante de tanta coisa boa oferecida à menina forasteira. Mas, antes mesmo de dar a guinada rumo ao drama da protagonista, o diretor Juan Carlos Fresnadillo perde oportunidades de conferir relevância maior à sua aventura infantojuvenil que serve de veículo a uma estrela em ascensão. As diferenças de classe entre monarquias prósperas e nobrezas falidas, a manutenção de uma lógica patriarcal, a renúncia da felicidade individual, o lugar de honra e abnegação no governo, enfim, são vários os temas e sentimentos apenas citados a caminho solidão dessa menina de personalidade que parecia ter tirado a sorte grande na vida.
Elodie afirma reiteradamente a sua presença de espírito, mas Juan Carlos Fresnadillo prefere não observar isso como atitude fora da curva e, portanto, passível de resistência pelos mecanismos da tradição. A falta da seriedade dramática é corroborada pela artificialidade dos figurinos sempre impecáveis, sem qualquer marca de passagem do tempo, um dos sintomas da construção imagética desprovida de ruídos e, portanto, limpa e organizada demais. Ainda quando Elodie descobre a verdadeira finalidade de sua presença naquele lugar de sonho, até diante da luta de vida e morte contra uma dragão fêmea (voz de Shohreh Aghdashloo) ávida por continuar a vingança secular contra humanos, Millie Bobby Brown parece uma guerreira postiça, cuidadosamente maquiada, despenteada para soar linda e casual, com roupas milimetricamente rasgadas. Isso sem contar que com cerca de 30 minutos de projeção a protagonista se vê sozinha numa caverna na qual luta contra a enorme predadora em muitos aspectos superior a ela. No entanto, a direção não consegue imprimir tensão nesse jogo de gato e rato pelos corredores do labirinto subterrâneo. Não basta mostrar Elodie correndo de um lado para o outro, encontrando pistas nas paredes e demonstrando apreensão ao ser perseguida, pois a mise en scène, ou seja, o modo como os elementos são organizados em cena, sabotam a intensidade dessa experiência.
Juan Carlos Fresnadillo tenta (em vão) interdepender aventura e empoderamento, mas aborda burocraticamente até as bem-vindas pontuações sobre a emancipação. Em meio à perseguição da dragão a Elodie, surgem momentos como a constatação da união feminina (via sacrifício das que vieram antes) para a protagonista triunfar e a valorização da princesa transformada em guerreira pelas circunstâncias. Tudo declarado mecanicamente por meio de enunciados breves com teor progressista. Bandeiras bem-intencionadas são levantadas esquematicamente para esclarecer o espectador sobre as intenções revolucionárias nunca valorizadas pela montagem, pela fotografia ou mesmo pelas interpretações. Millie Bobby Brown trabalha dentro de um conjunto restrito de emoções e acessa uma ainda mais limitada conscientização política para sua personagem se tornar símbolo real de alguma coisa. Curioso que as vilãs são mulheres (a dragão e a rainha Isabelle vivida por Robin Wright). O único homem com importância é o pai Elodie, lorde Bayford (Ray Winstone) – que se dispõe duplamente ao sacrifício, primeiro para salvar domínios e, segundo, para socorrer a filha. Porém, o que pesa para o resultado negativo é o feminismo embalado a vácuo, servido em sentenças, e o artificialismo gritante em certas cenas, como quando Elodie surge rasgada e impecavelmente maquiada depois da luta com a besta-fera.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 4 |
Leonardo Ribeiro | 4 |
MÉDIA | 2 |
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