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Sinopse

Buenos Aires, 2012. O cardeal argentino Jorge Bergoglio está decidido a pedir sua aposentadoria, devido a divergências sobre a forma como o papa Bento XVI tem conduzido a Igreja. Com a passagem já comprada para Roma, ele é surpreendido com um convite da própria autoridade suprema do catolicismo para visitá-lo. Ao chegar, iniciam uma longa conversa, na qual debatem não só os rumos da religião católica, mas também afeições e peculiaridades da personalidade de cada um.

Crítica

Os primeiros acordes ouvidos são de… Besame Mucho! A melodia clássica, tão celebrada quanto maltratada, funciona como música de espera de uma chamada telefônica. De um lado, a operadora atente com nítida má vontade, fingindo cordialidade. Do outro, um senhor mais curioso do que preparado, pergunta se pode, através da ligação, adquirir uma passagem de avião. Quando questionado sobre seu nome, revela: Jorge Bergoglio. A ouvinte questiona: “como o Papa?”. Exatamente como o Papa, afinal, é o próprio. Incrédula, a moça prefere desligar, irritada com o suposto “trote”, encerrando a conversa e deixando-o com um problema nas mãos. O espectador, diante de uma situação repleta de absurdos, é incapaz de conter o riso. E assim tem início Dois Papas, filme de Fernando Meirelles que consegue tratar de um assunto absolutamente sério – a renúncia quase inédita do chefe maior da Igreja Católica e a ascensão ao cargo do menos esperado dos homens – com bom humor e leveza, oferecendo uma combinação que não apenas funciona na medida certa, como também é eficiente em despertar interesse até mesmo entre os menos curiosos pelo episódio que, apesar de verídico, aqui assume tons de pura fantasia. O que termina por lhe cair com surpreendente precisão, é preciso afirmar.

Afinal, é fato que Bento XVI chamara Bergoglio para uma conversa, mais de um ano antes de tomar sua decisão histórica de se retirar do comando do Vaticano. Porém, se quanto a isso não há dúvidas, sobre o que os dois, de fato, conversaram, resta não mais do que pura especulação. Dos encontros entre os dois não há transcrições, registros oficiais. Ficaram ambos hospedados na mesma casa, circularam pelos mesmos jardins e corredores, e trocaram, imagina-se, confissões. Discutiram suas histórias, o futuro da instituição a qual ambos pertencem e lideram, questionando movimentos passados e suposições futuras. Deste amontoado de conjecturas, Anthony McCarten construiu um roteiro que brinca com um emaranhado de possibilidades, entrelaçando sutilezas imaginadas com características próprias de cada uma destas figuras tão reconhecidas, seja pela sisudez de um ou pelo sorriso largo de outro. Mas não se deixe enganar: o mergulho é bem mais profundo do que promete a vista da superfície.

Afinal, não estamos aqui falando de um novato inexperiente. McCarten já soma três indicações ao Oscar no currículo, e seus três longas anteriores, pelo bem ou pelo mal, disputaram a estatueta de Melhor Filme do ano. Chega a ser curioso perceber, no entanto, que Dois Papas, apesar de inegavelmente superior a estes, pareça ser o mais frágil em comparação. Isso porque, a despeito do peso destes protagonistas, ambos seguem vivos: ao contrário de Stephen Hawking, Winston Churchill e Freddie Mercury. A imaginação, portanto, é mais cerceada. Se os outros residem apenas em lembranças e representações históricas, os de agora estão presentes, possíveis de serem confrontados a qualquer instante. Por isso mesmo, o tom fabular que oferece a sua narrativa acaba por se revelar um acerto preciso, pois não apenas dota essa jornada de uma leveza inesperada, como também lhe abre caminhos, fazendo dessa reunião uma obra não apenas surpreendente, mas também digna de toda atenção.

Bento está cansado, o Catolicismo tem sido atacado por todos os lados, e nem mesmo ele sabe como proceder diante das polêmicas levantadas e dos sinais de fraqueza que tomam não apenas o seu corpo, mas se refletem em cada uma das suas decisões. Bergoglio, por sua vez, não é destituído de passado. Sua história é conturbada, e as ligações com a ditadura na Argentina e uma postura que nem sempre foi muito clara a respeito da conturbada trajetória política de seu país natal pesam sobre seus ombros. No entanto, visto tudo que alcançou nos anos seguintes, fica claro o aprendizado de tal lição. Seguiu em frente, e mais do que isso: assimilou tais tropeços e enganos. É tudo, portanto, que a própria Igreja necessita: não apenas alguém capaz de operar milagres, mas também hábil o suficiente para lidar com assuntos bem mais terrenos. É o momento da retirada de um, e da chegada de outro. Não é necessário criar continuidade. Pelo contrário, é preciso reconhecer no seu oposto o talento suficiente para operar um bem maior. Bento não quer alguém como ele. Precisa, veja bem, daquele que transita por caminhos que ele próprio não reconhece. Tal entendimento é de uma magnitude inesperada, e, muito provavelmente, talvez seja o seu maior legado.

Nada disso seria possível, no entanto, se não fosse a delicada operação empreendida por Meirelles. Afastado das câmeras desde o irregular 360 (2011), alcança com Dois Papas um dos melhores resultados de toda a sua filmografia – e olhe que estamos falando do profissional indicado ao Oscar por Cidade de Deus (2002). Assumindo uma composição quase teatral, com apenas dois intérpretes em estado de graça – é difícil afirmar qual dos dois, se Anthony Hopkins ou Jonathan Pryce, está mais apropriado como Bento ou Francisco, respectivamente – na maior parte do tempo em cena, o cineasta cria o ambiente perfeito para seus protagonistas fazerem o que sabem melhor, apenas pontuando aqui e ali com uma graça contagiante, bem equilibrada com uma emoção que não evita abordar discussões mais relevantes e pontuais, como o propósito da religião, as funções destes que professam a palavra do Senhor e a representatividade de toda essa pompa e circunstância que os circunda. Assim, tem-se uma obra sobre fé e esperança, mas nunca cega aos problemas, que não foge dos debates mais sérios, e eficiente, ainda, em lidar com esses sem violência ou atropelamentos. No final, o que resta é a torcida para que, ao menos parte de tudo que aqui foi visto, tenha sido verdade. Já seria um excelente começo.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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