Crítica

Apichatpong Weerasethakul – ou apenas ‘Joe’, como o apelidaram no Ocidente – está longe de ser um cineasta convencional. É, no entanto, o maior nome do cinema tailandês da atualidade, e basta conferir apenas um dos seus títulos para entender o porquê. Sua obra transcende o comum com bastante tranquilidade, apresentando-se de braços abertos e sem grandes alardes. Suas histórias são naturais e absurdas, simples e complexas. E sua habilidade em lidar com extremos aparentemente antagônicos mais uma vez é testada em Cemitério do Esplendor, seu mais recente trabalho. Um filme que, assim como seus trabalhos anteriores, é tudo menos óbvio.

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O cenário é desprovido de muitos detalhes. Estamos em um hospital. Um olhar mais atento, no entanto, fará o espectador perceber que, na verdade, o mesmo prédio já foi uma escola. E com o desenrolar da trama iremos descobrir que, muitos anos atrás, naquele mesmo terreno ficava uma palácio de reis onde teria se sucedido uma grande batalha. Assim como as verdades vão sendo desconstruídas, da mesma forma se dá a leitura desse conto proposto pelo diretor: nada é exatamente o que se parece ser num primeiro instante. Só que as profundidades possíveis de entendimento não se limitam a um ou outro empenho, podendo atingir níveis de compreensão tão ou mais além do esperado. O problema, no entanto, de se ir longe demais, é que talvez se esqueça o caminho de volta.

A protagonista de Cemitério do Esplendor é Jenjira (Jenjira Pongpas, que também estava em Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, 2010), uma mulher manca que se aproxima do hospital para vender meias que ela própria costura à mão. Uma vez lá, acaba ficando amiga das enfermeiras e da jovem Keng (Jarinpattra Rueangram), uma médium cuja função é ouvir o que os pacientes adormecidos tem a lhe dizer em seus sonhos. Esse é o fato curioso que chama atenção no lugar: a maioria dos internos são soldados que passam seus dias dormindo. A sonolência só pode ser explicada através de justificativas vindas de outras vidas: seriam os espíritos dos antigos guerreiros que ali pereceram que estariam fazendo uso de suas forças para seguirem com suas lutas. Ou seja, ao mesmo tempo em que descansam em recuperação, ajudam líderes de gerações passadas.

Impressionada com o fato, Jenjira acaba se oferecendo como voluntária para cuidar de Itt (Banlop Lomnoi, de Mal dos Trópicos, 2004), um dos tantos em igual situação. Ao acordar, ele vê nela um apoio inesperado, e o convívio que os dois passam a estabelecer poderá ter consequências individuais para cada um. Mas não algo óbvio como uma atração passageira. Weerasethakul apenas usa esses personagens para comentar a atual situação de seu país e dialogar sobre o mundo em que vivemos. A influência estrangeira, o modismo nos cuidados com o corpo, o uso das novas tecnologias, as relações familiares e o poderio descontrolada do governo sobre o indivíduo são apenas algumas das tantas questões que o realizador expressa interesse por um momento ou dois, sem nunca exercer uma abordagem didática. Ele abre a porta, mas deixa as reflexões por conta de cada um.

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Com tantos elementos em cena, Weerasethakul constrói um quebra-cabeças curioso, que vai jogando através do ritmo lento da narrativa, da câmera quase sempre estática e da edição discreta para provocar reações em sua audiência. E quando parece não ter mais nada a dizer, ele passa a provocar através de situações quase gratuitas – um homem de cócoras defecando no meio da mata, uma mulher brincando com a ereção involuntária de um enfermo, uma jovem ajoelhada lambendo as cicatrizes que a veterana exibe como registro de sua trajetória – que tanto chocam como forçam uma saída da zona de conforto, deixando claro que nem sempre as respostas se apresentam num primeiro momento. Cemitério do Esplendor pode afastar uma audiência menos paciente, mas oferece ganhos suficientes para os que fizerem o necessário para irem além do óbvio. Afinal, como bem diz o ditado, pouco valor tem aquilo que é ganho sem esforço.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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