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Sinopse

Sélem, de 45 anos, e Diana, de 22 anos, pertencem a gerações diferentes e partes distintas do Brasil. No entanto, as duas são mulheres negras e transexuais, lutando por seus direitos, como o reconhecimento do nome social e o direito de usar o banheiro feminino. Elas retratam seus combates diários na cidade do Rio de Janeiro.

Crítica

O documentário se abre de maneira interessante. A diretora Juliana Chagas Gouveia conversa com a protagonista, mas nenhuma das duas se dirige à imagem. A câmera se encontra no banco de trás de um carro, enquanto as mulheres conversam uma com a outra no banco da frente. O tom é amigável, e a viagem possui um destino bastante especial, no caso, o cartório onde Sélem, mulher transexual, está prestes a conseguir os documentos com o nome feminino. Presenciamos tanto as perguntas quanto as respostas, alheias ao nosso olhar, como se diretora e personagem não estivessem falando para um filme. Chegando ao local, a protagonista se emociona diante dos documentos, mas a cineasta questiona à funcionária: o sexo não deveria ter mudado para “feminino”? Diga Meu Nome (2020) se abre com a impressão de um filme-processo, ou ao menos um filme cúmplice: acompanhamos tanto o procedimento de Sélem na busca por reconhecimento quanto o da diretora, descobrindo diante das câmeras como funcionam os trâmites burocráticos envolvendo o reconhecimento de gênero de pessoas trans. Talvez fosse mais fácil registrar todos estes momentos e reter apenas as cenas mais marcantes (a expressão da personagem, a imagem do papel), porém Gouveia faz questão de se incluir enquanto personagem.

Esta escolha produz um efeito notável. O filme nunca adota a postura de aula ou lição de moral: de certo modo, a direção assume estar investigando sobre o tema. “Por que você não explicou pra ela a diferença entre travesti e transexual?”, pergunta a diretora sinceramente, ao que Sélem responde que está cansada de se justificar, e não vê por que seria sua responsabilidade educar as pessoas cisgênero. “Dá um Google”, decreta, simulando a resposta às pessoas confusas sobre sua identidade de gênero. Muitos documentários têm algo a ensinar, porém este filme assume que tem algo a aprender. A diretora ousa se revelar junto à equipe, esperando pacientemente a chegada de Diana para uma entrevista. Há certa humildade nesta postura, além da vontade de atenuar a estrutura de poder entre filmante e filmado. “Você conhece outras pessoas trans na UERJ?”, pergunta a diretora a Diana, recebendo uma resposta vaga, por desconhecimento da garota sobre os dados específicos. Normalmente, o processo de edição eliminaria cenas como esta, porém esta obra faz questão de exibir os bastidores em construção contínua. Assim, as protagonistas se tornam co-criadoras, vozes que condicionam os rumos da narrativa tanto quanto são controladas por ela.

Mesmo que se concentre em apenas duas histórias, elas se completam bem: trata-se de mulheres transexuais de gerações diferentes, uma nordestina, a outra sudestina, e ambas negras. Sélem teve pouca oportunidade de estudar, após ser expulsa de casa pelo pai evangélico. Já Diana apresenta um discurso eloquente, fruto de pesquisas e da vivência. Juntas, elas simbolizam uma pequena, porém importante, melhoria de vida nas últimas décadas: enquanto a primeira precisou se prostituir para sobreviver, a segunda pôde evitar a prostituição. Enquanto Sélem sofreu preconceito no trabalho e só conseguiu mudar o registro do nome após os 40 anos de idade, Diana consegue a alteração desde a entrada na universidade. A montagem alterna rigidamente entre uma cena com Sélem e outra com Diana. O conceito simples cumpre a proposta de paralelismo, condicionando o espectador a associá-las. Além disso, a diretora introduz cenas pontuais de descanso entre os depoimentos, a exemplo de um passeio silencioso pelo aquário e uma conversa despretensiosa com os amigos no bar. Estes trechos atenuam o teor potencialmente verborrágico, além de situarem as mulheres trans no espaço urbano fora da posição de marginalidade.

Apesar dos méritos na condução do tema, o posicionamento da câmera gera alguns questionamentos. O olhar procura se situar ao mesmo tempo à distância (e, portanto, sem intervir) e extremamente perto dos rostos e documentos, o que produz a sensação de artificialidade. Quando chegam ao cartório, a diretora e Sélem são recebidas com extrema cordialidade pelas funcionárias, cujo comportamento é certamente afetado pela presença do dispositivo cinematográfico. Algumas conversas simples com as funcionárias são registradas em plano e contraplano, às vezes com intensa decupagem, muito mais propensa à ficção do que ao documentário. O recurso sugere o aspecto de encenação, algo prejudicial ao realismo. Ao mesmo tempo, algumas conversas parecem estimuladas ou controladas pela direção. “O que você acha dessa conquista da tia?”, pergunta Sélem à sobrinha durante um almoço, enquanto a câmera registra as mulheres em meia dúzia de planos diferentes. A jovem responde que isso não faria diferença alguma, porque se importa apenas com a felicidade da tia. A cena se encerra com a bela mensagem, um pouco redutora dentro daquele contexto social. As protagonistas trazem depoimentos fortes e honestos, porém as interações privilegiam o otimismo.

Por mais simples que seja a sucessão de conversas, que sequer busca material de arquivo ou pontos de vista mais amplos (de outras pessoas trans, de especialistas etc.), Diga Meu Nome demonstra belo trabalho de luz nas entrevistas, com cuidado exemplar de enquadramento e profundidade de campo, além de tratamento de eficaz de som. Talvez a direção pudesse ir além, retratando as vidas afetivas dessas mulheres, acompanhando-as no dia a dia, sem se limitar a momentos-chaves na trajetória de ambas – a conquista dos documentos, a admissão na universidade. O projeto almeja ao posto de mensagem exemplar: ele pretende mostrar que é possível conquistar estes espaços, superar preconceitos e ser aceita por sua identidade de gênero, sem ceder às pressões da sociedade. A conclusão, quando ambas enfim se encontram, proporciona um momento curto, porém emocionalmente potente. As conversas entre Diana e Sélem poderiam render mais interações dignas de atenção, mas Gouveia evita se aprofundar, talvez em nome do pudor e respeito: a cineasta foge de possíveis instantes melodramáticos. Ao fim, estas mulheres não se tornam vítimas nem heroínas. A desconstrução do exotismo sobre o corpo e a identidade trans constitui uma das forças do documentário.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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