Crítica
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Crítica
Escrever sobre um filme como Deus e o Diabo na Terra do Sol nos dias de hoje, exatamente 50 anos após o seu lançamento e ciente de tudo que essa obra representa para o cinema nacional, não é tarefa das mais fáceis. Porém, é importante ter em mente que toda obra deve se valer por si só, independente de construções paralelas, discussões posteriores ou expectativas prévias. A necessidade de ‘bula’, ou seja, de debates conjuntos que contribuam no esclarecimento de determinados pontos e, em alguns casos, da arte como um todo, é mais uma muleta que até pode ter sua valia, porém em última instância serve apenas para apontar os pontos fracos da proposta em questão. E isso, felizmente, esse trabalho referencial de Glauber Rocha independe. Ainda hoje se mantém em pé, com uma narrativa hipnótica e envolvente, tristemente tão pertinente ao Brasil atual quanto o era em sua época de realização.
Manuel (Geraldo Del Rey) é eu, você ou qualquer outro brasileiro. Peão, capataz e jagunço, é homem duro, que vive do que o sertão lhe oferece. Contratado para buscar o gado de um poderoso fazendeiro através da aridez da região onde mora, não consegue evitar que quatro cabeças sejam mortas pelo caminho. Como resultado, precisa assumir a culpa e vê todo seu lucro ir embora, num acuamento típico do coronel abusivo contra o oprimido sem expressão. Porém Manuel não tem nada a perder, e quando se percebe sem outra escapatória, reconhece bruscamente que sua única força é a da faca em sua mão. E será fazendo uso dela que selará seu destino a partir daquele momento.
Tal atitude não se dará sem consequência. Após atacarem sua família, se vê sem casa, nem laços, apenas com a mulher (Yoná Magalhães, em uma de suas raras aparições no cinema) ao seu lado rumo ao deserto sem fim. E será nessa Terra do Sol intermitente que ele se verá, literalmente, entre Deus e o Diabo. É curioso perceber que o título internacional deste filme é Black God White Devil, ou seja, Deus Negro Diabo Branco. Essa tradução, que hoje poderia ser taxada até mesmo como preconceituosa, é absurdamente apropriada. E não só pela referência imediata a partir do momento em que Manuel se vê, num primeiro momento, envolvido pelas pregações do pretenso santo Sebastião (Lídio Silva), um negro messiânico que, com seus dizeres, acaba incomodando governo e igreja tão ou mais intensamente do que o cangaceiro Corisco (Othon Bastos), o criminoso branco que acredita ser possível resolver todos os problemas do mundo na ponta do seu punhal. Mas também pelos significados não tão explícitos, porém evidentes, que tais características podem carregar.
Mais do que uma questão de pele, a discussão que o título propõe parece estar aliada ao reconhecimento da inexistência de certo e errado num universo como o aqui exposto. Se o que vemos são padres e governantes contratando assassinos de aluguel, pregadores cometendo assassinatos bárbaros e fiéis desprezando valores como família e bem ao próximo, são os então fora-da-lei que lutam pela justiça, pelo correto e por uma ordem que organize de vez as coisas. Mais do que os extremos propostos pelo branco e preto, está no cinza a verdade destes elementos e figuras que ali habitam, compondo um mosaico tão forte hoje como quando esse discurso foi proferido pela primeira vez, há mais de meio século. Glauber Rocha mostra a força e a relevância de seu cinema por fazer uso de imagens arraigadas ao imaginário popular e também a uma realidade que insiste em se fazer presente, seja no interior ou na capital. E uma vez que a identificação se estabelece de modo quase indelével, é praticamente impossível voltar atrás.
Deus e o Diabo na Terra do Sol é um dos marcos do Cinema Novo nacional, aquele filme que levou o nome de seu realizador e da nossa cinematografia ao redor do mundo tendo como única bandeira a precisão a respeito do que vivemos nesse país. Filme-denúncia e exposição, é eficiente tanto num primeiro plano, com seu enredo bem amarrado e elenco em primorosa sintonia, quanto na sua profundidade, que revela muito mais do que é possível depreender numa leitura superficial e apressada. Clássico inegável, merece o lugar de destaque que conquistou com o passar dos anos, mostrando-se ainda hoje impressionante para um público de hoje esclarecido e ciente desta realidade, confirmando-se, portanto, irreversivelmente atemporal e pertinente. Tem-se aqui um tratado sobre o Brasil, feito com um amor inegável por essa terra, mas nunca cego ou seletivo. E é na busca por este entendimento que reside sua durabilidade, imprescindível para qualquer um que se proponha a refletir com embasamento sobre essa identidade tão mutável, e, talvez por isso mesmo, tão própria.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Robledo Milani | 10 |
Filipe Pereira | 10 |
Jorge Ghiorzi | 10 |
Wallace Andrioli | 10 |
Marcelo Müller | 10 |
MÉDIA | 10 |
10